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“Não há boa praxe ou má praxe, praxe há só uma”

Bruno Moraes Cabral, realizador do documentário “Praxis” - premiado no Doclisboa 2011 e recentemente transmitido na RTP - diz ao esquerda.net que não faz sentido falar de “integração” quando todas as praxes se baseiam em valores de dominação “contrários ao que deviam ser os princípios da universidade”.
Foto de José Gema.

Nas praxes que filmaste em vários pontos do país, que métodos encontraste de “integração” dos estudantes na vida universitária?

As iniciativas das praxes eram sempre muito semelhantes e isso foi surpreendente: estar "de quatro", constantemente insultado, fazer flexões, olhar sempre para o chão, gritar em uníssono que o nosso curso é o maior e sexualmente dominante… estas são as práticas generalizadas das praxes.

Podem eventualmente existir outros momentos de menor violência ou até de confraternização, mas a ideia de que o veterano é o dominador e o caloiro o dominado é intrínseca à integração como se faz atualmente. Estes valores são contrários aqueles que deveriam ser os princípios da universidade: a democracia, o respeito, um espaço de abertura e possibilidades. Do ponto de vista dos estudantes, deveria ser um lugar de experiências de insubmissão e de rebeldia, sobretudo no contexto da sua mercantilização e do desinvestimento do Estado na área.

Apesar do “Praxis” ter sido premiado no Doclisboa, foi preciso acontecer uma tragédia para ele chegar ao grande público, com a transmissão na RTP. Como interpretas este adormecimento da sociedade em relação ao fenómeno das praxes?

A sociedade tem muitas responsabilidades, porque foi conivente com a generalização da praxe pelo país todo e com a sua instituição como forma dominante de integração. De fora, a praxe foi geralmente vista como uma mera brincadeira estudantil, mesmo quando os seus excessos saltavam à vista. As Universidades também foram complacentes, porque muitas direções têm evitado pronunciar-se para manter boas relações com as comissões de praxes e os veteranos. E os estudantes, ao se integrarem pela praxe, reproduzem nos anos seguintes a sua experiência, porque ninguém os confronta, nem existe esta reflexão acerca de alternativas.

Nos vários debates que fiz, depois de verem o documentário, diziam sempre "na minha universidade não é assim", mesmo que tivesse sido filmado na sua universidade. Havia obviamente uma incapacidade de olhar e de auto-crítica. Espero que a luz seja rapidamente feita sobre o que realmente aconteceu no Meco, mas independentemente desta tragédia, já houve muitas vítimas de praxes e já deveríamos ter tido este debate há muito tempo.

No debate sobre o documentário realizado na Aula Magna em 2011, os argumentos dos defensores da praxe foram muito diferentes dos que estão a ser esgrimidos no debate atual. Que explicação encontras para isso?

Efetivamente na altura esses debates eram muito marcados ideologicamente. Até há uma entrevista ao Dux de Coimbra no Jornal Universitário "A Cabra" em Abril de 2012 em que ele afirma "A praxe é hierárquica, é machista, é sexista. São características intrínsecas à praxe da Universidade de Coimbra e quando isso deixar de existir, deixa de ser a praxe da UC."

Eu ouvi repetidamente que a praxe é boa porque nos ensina a obedecer, que temos de sujeitar-nos ao que os mais velhos dizem, aos nossos patrões… isso faria todo o sentido num exército, que é organizado para obedecer a ordens, nunca numa universidade. Perante a atual tomada de consciência da sociedade, os argumentos dos defensores desta ideologia mudam para tentar salvaguardar ainda estas práticas. Mas não há boa ou má praxe, tal como ouvi num destes debates, “praxe há só uma", e temos de dar lugar a uma alternativa já no próximo mês de setembro.

 

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Neste dossier:

Praxes: humilhação e impunidade

O país despertou no último mês para a realidade das praxes do ensino superior, esses rituais de humilhação e violência psicológica que ganharam força nos últimos anos e hoje contaminam uma parte importante da vida universitária e do convívio entre estudantes.
Dossier organizado por Luís Branco.

Cronologia da violência das praxes

Com base nas notícias compiladas por coletivos antipraxe ao longo da última década e meia, lembramos aqui alguns dos casos denunciados por vítimas da praxe que chegaram à comunicação social.

“Não há boa praxe ou má praxe, praxe há só uma”

Bruno Moraes Cabral, realizador do documentário “Praxis” - premiado no Doclisboa 2011 e recentemente transmitido na RTP - diz ao esquerda.net que não faz sentido falar de “integração” quando todas as praxes se baseiam em valores de dominação “contrários ao que deviam ser os princípios da universidade”.

Se não agora, quando?

A primeira intervenção que fiz no Parlamento, no final de 2007, foi sobre a violência nas praxes. Seis anos depois, esse exercício de poder e a impunidade continuam a ser a regra, se não dentro, à porta das Universidades.

O que dizia o relatório parlamentar de 2008 sobre as praxes

Por iniciativa do Bloco de Esquerda, a Comissão de Educação e Ciência da Assembleia da República discutiu as praxes e recolheu contributos do meio académico. Mas as conclusões e propostas concretas nunca foram seguidas pelos governos.

Cinco mitos em torno das praxes

O historiador Rui Bebiano regressa a um tema que conhece bem para colocar em causa cinco mitos sobre as praxes: os da “tradição”, “simpatia popular”, “aceitação pelos caloiros”, “prestígio para as instituições” e “integração ou preparação para a vida”. Artigo publicado no blogue “A Terceira Noite”.

Debates sobre a Praxe: balanço dos Prós e Contras

O debate sobre a praxe que surgiu, como uma avalanche, nos media e redes sociais nas últimas semanas apresenta poucas novidades e corre sérios riscos de deixar tudo na mesma, apesar de, pela primeira vez, ter interpelado toda a sociedade e todos os responsáveis, das associações de estudantes ao Primeiro-ministro.

Duas memórias da praxe

A praxe está na berlinda e não é por ser uma versão sofisticada do jogo do berlinde. Para fazer “jogo abaixo”, recordo duas vivências nas duas faculdades por onde passei: o Instituto Superior Técnico e Letras de Lisboa.

A Volta da Praxe

Em meados da década de 1990, a praxe e a “tradição académica” já estavam disseminadas no ensino superior público e privado. Esta reportagem de Luísa Costa Gomes, publicada em 1996 na revista Grande Reportagem, parte dessa realidade para recuar aos últimos séculos da história das praxes em Portugal.

Coimbra não é vossa

Para quem não está a ver como é a vida na cidade que viu nascer a tal de praxe, passo a  narrar. Quinze dias do ano em particular, e muitas das terças e quintas em geral, as leis por aqui não são iguais para todos. Artigo de João José Cardoso, publicado no blogue Aventar.

A praxe coimbrã no fim da ditadura

Este artigo do historiador Miguel Cardina, publicado em 2008 na Revista Crítica de Ciências Sociais, relaciona os movimentos estudantis dos últimos anos da ditadura com as mutações então ocorridas no terreno da praxe académica em Coimbra.

O Manifesto Anti-Praxe de 2003

Em 2003, o Movimento Anti-Tradição Académica juntou-se ao coletivo Antípodas e à República das Marias do Loureiro para lançar um desafio a personalidades de dentro e fora do meio académico: juntarem-se pela primeira vez numa tomada de posição pública contra as praxes.

Receber ou praxar?

O jogo de semântica inerente à distinção entre praxes-que-são-praxes e praxes-que-não-são-praxes é tão inútil quanto revelador da incapacidade da praxe se auto-regular ou sequer olhar para dentro de si mesma.

A praxe é uma aventura

Música anti-praxe composta e interpretada pelo duo Azeitivinagre em 2010.

Praxistas defendem "direito à humilhação"

Praxistas defendem a humilhação como forma de integração na universidade e na vida activa, num debate na Aula Magna, em Lisboa, depois da projeção do filme "Praxis".