Está aqui

Duas memórias da praxe

A praxe está na berlinda e não é por ser uma versão sofisticada do jogo do berlinde. Para fazer “jogo abaixo”, recordo duas vivências nas duas faculdades por onde passei: o Instituto Superior Técnico e Letras de Lisboa.
Foto do Movimento Anti-Tradição Académica.

1) Instituto Superior Técnico, 1997/1998.

Estava eu no segundo do ano do curso de Engenharia Física Tecnológica. Era início do ano letivo, época de praxes. A notícia correu depressa por vários pavilhões da universidade: dizia que um aluno do primeiro ano enfrentara os veteranos recusando enfeitar o seu cabelo com espuma de barbear. Pior: depois dos veteranos, contra a sua vontade, lhe espetarem com a espuma, o novo aluno devolveu a simpatia, sujando os senhores doutores (ultraje). De seguida, esgueirou-se para a zona do Pavilhão Central, exclusiva para as inscrições dos alunos do primeiro ano - a universidade garantira que só nesse pequeno recinto, e apenas nesse pequeno recinto, os novos alunos estariam a salvo da barbárie, a salvo dos borrões de tinta e laca nos impressos.

 

Um punhado de ativistas anti-praxe, em que me incluía, dirigiu-se para o local do crime, onde rapidamente se aglomerava uma multidão de alunos. Muitos de capa e batina, outros não. Mas quase todos ululavam. Sim, gritavam, vibravam, uivavam, tal como no Prós e Contras desta semana. Tinham carne fresca à sua espera. Aguardavam impacientemente que o aluno do primeiro ano saísse do coito. “Nem sabes o que te espera”, “Ó caloiro da m….estás fodi…”, “Agora é que tu vais ver!”. Unanimidade quase absoluta. Urgia repreender exemplarmente o caloiro que desobedecera. Perguntámos a um veterano que quase espumava de raiva: “Quem é o tipo?”, “É aquele, o da camisola da Nike”, respondia, assumindo sem questionar que estávamos ali pelas mesmas razões que eles (não seria óbvio?). “Ah sim, já estamos a ver”, dissemos nós, sem nos revelarmos. Foi aí que pedimos aos seguranças para entrar na zona exclusiva, no sentido de conversar com o aluno para “evitar males maiores”. Assim o fez um de nós, discretamente. Disse-lhe que, apesar da maioria que lá estava à sua espera ansiar por vingança, por mais estranho que parecesse havia gente com bom senso na universidade. Estávamos ali para o ajudar. À saída, rodeámos o aluno e com ele no meio furámos a multidão, num gesto ambíguo que baralhou os veteranos: “será que querem o caloiro só para eles?”.

 

Quando os boçais compreenderam ao que vínhamos, já era tarde. Gritaram de frustração. Tínhamos acabado de lhes roubar a presa pela qual já se babavam. Não podia ser. A perseguição durou até ao exterior da universidade. Sim, tivemos que fugir da também nossa universidade. Corriam atrás de nós em desespero, ameaçavam-nos com tudo e mais alguma coisa. Estávamos na Avenida António José de Almeida. Queriam porrada. Só acalmaram quando, junto a uma obra, um dos nossos - confesso que eu não teria coragem para isso, pois apesar do imperativo ético estava com aquele medo a trepar-me a espinha - pegou numa pedra da calçada e exclamou: “Quem tocar no caloiro leva com o calhau nos cornos!”. Aí tudo mudou: “Calma, calma, não é preciso…e tal…”. Recuaram. Mas não sem antes ameaçarem todos. A mim disseram: “Um dia destes arranco-te esse cabelo e essa barba ao pontapé” (felizmente foi de forma voluntária que acabei por cortá-lo alguns anos mais tarde). Frustrados, desistiram e foram procurar outras presas mais colaborantes, mais “livres” para aceitar a praxe.

 

Recordo este episódio para dar corpo a duas ideias: a primeira é que na praxe não há liberdade e a segunda é que a violência faz parte da praxe.

 

2) Faculdade de Letras de Lisboa, 1999/2000.

 

Há um ano que havia mudado de curso e de universidade. Trocara a Física pela Filosofia. Estava na Direção da Associação de Estudantes, numa lista muito ampla: gente, como eu, do recém-criado Bloco de Esquerda, muito mais gente da JCP, alguns alunos da JS e outros sem qualquer inclinação partidária, todos juntos pelo ensino público, universal, democrático e gratuito. Havíamos deixado a larga distância eleitoral a lista conotada com a JSD. Éramos um grupo muito heterogéneo mas que se ia entendendo até…até a praxe fazer das suas. Afinal, era uma tradição que nunca havia sido questionada. Todos os anos, a Associação de Estudantes dava um punhado de escudos para patrocinar o tribunal de praxe (acho que lá entrei uma vez para distribuir panfletos antipraxe e deparei-me com um ambiente medieval, quais trevas que se distinguiam pela luz de algumas velas). Escudos para comprar velas.

 

E ali estávamos nós numa reunião de Direção, para, no meio de mil outros assuntos, decidir o costume e o óbvio. Apoiar financeiramente o Tribunal de Praxe. Recusámos, numa votação renhida. Pela primeira vez, a Associação de Estudantes não seria cúmplice daquela palhaçada. O que nós fomos fazer…”Injúria! Profanação! Ultraje!”. Foi o suficiente para que quase metade da Direção se demitisse. (por sinal, muitos dos que se demitiram eram próximos da JS). E depois? Com uma Direção enfraquecida, fomos inexcedíveis. Promovemos uma greve que durou dois dias contra o fecho antecipado da biblioteca da faculdade, ocupámos a dita cuja, vencemos provisoriamente adiando o seu encerramento, lutámos em todas as frentes pelos direitos dos estudantes, avivámos culturalmente a faculdade. Tempos bons.

 

Mas enquanto uns lutavam outros preparavam o assalto à AE, pensando nas eleições seguintes. Os mesmos que se demitiram por causa da praxe uniram-se à Direita da faculdade. JS e JSD estavam agora juntas, por um “governo de salvação nacional da praxe”. O ambiente foi escaldante, as eleições foram duras e renhidas: com cerca de 1200 votantes, perdemos por 40 votos. Foi a força da praxe que nos derrotou.

 

Felizmente a história não acabou aqui. Não desistimos e continuámos a mobilizar estudantes para o que interessava: defender o ensino gratuito, lutar pelo investimento na Educação. No ano seguinte, o nosso “Projecto X”venceu as eleições à vontade, e nos anos posteriores também. Durante muitos anos, a Direita da faculdade de letras foi obrigada a contentar-se apenas com os corredores da praxe. O que não é pouco. Na verdade, a nossa Associação de Estudantes nunca combateu diretamente a praxe, limitou-se a evitar envolver-se nela. Até apoiámos tunas e incluiu elementos seus nas nossas fileiras, tentando separar (ainda que questionavelmente, penso eu) as “serenatas” da humilhação. Organizámos receções ao novo aluno sem praxe. Só que a relação de forças interna não permitia ir mais além. Não permitia atacar a praxe com a chancela da Associação de Estudantes. Afinal, provocar o gigante já mostrara ter os seus custos. Sim, o raio da tática.

 

Curiosamente, uma das raras vezes que, nesta época, uma Associação de Estudantes atacou de frente a praxe foi nesse ano de 1999, no Instituto Superior Técnico, quando um grupo de ativistas de esquerda venceu a Direção da Associação de Estudantes. Na receção ao novo aluno, organizaram atividades não só alternativas, como contra a praxe. Impossível esquecer o autocolante da AEIST, que muitos caloiros usaram, com o slogan: “Obrigado pela atenção, mas praxe não!”.

 

Recordo esta segunda história para ilustrar o seguinte: a praxe anda de mãos dadas com o poder. Mais: a praxe é poder. É por isso que vemos dirigentes académicos – como esta semana, no Prós e Contras, o quase envergonhado Presidente da AAC – a defender a praxe. Precisam dela para ganhar eleições. Precisam dela como um general precisa de um exército obediente. No meu tempo de estudante – e acredito que agora assim seja também - ouvia-se muito: “Eh pá, vai ser difícil ganhar as eleições para a Associação de Estudantes, os outros tipos têm a comissão de praxe do lado deles”. Foi sempre este calculismo eleitoral que impediu que o problema fosse enfrentado de frente. Até a JCP - com algumas exceções - recusava hostilizar a praxe, e por vezes preferia até a cumplicidade. Calculismo eleitoral.

 

Mas havia o MATA (Movimento Anti-Tradição Acacémica). Um grupo de ativistas contra a praxe. Éramos vistos por muitos como um bando de aves raras, demasiado sérios, esquisitos e antipáticos. Mais do que nunca, agora apetece perguntar: afinal, quem é que MATA?

Sobre o/a autor(a)

Professor.
(...)

Neste dossier:

Praxes: humilhação e impunidade

O país despertou no último mês para a realidade das praxes do ensino superior, esses rituais de humilhação e violência psicológica que ganharam força nos últimos anos e hoje contaminam uma parte importante da vida universitária e do convívio entre estudantes.
Dossier organizado por Luís Branco.

Cronologia da violência das praxes

Com base nas notícias compiladas por coletivos antipraxe ao longo da última década e meia, lembramos aqui alguns dos casos denunciados por vítimas da praxe que chegaram à comunicação social.

“Não há boa praxe ou má praxe, praxe há só uma”

Bruno Moraes Cabral, realizador do documentário “Praxis” - premiado no Doclisboa 2011 e recentemente transmitido na RTP - diz ao esquerda.net que não faz sentido falar de “integração” quando todas as praxes se baseiam em valores de dominação “contrários ao que deviam ser os princípios da universidade”.

Se não agora, quando?

A primeira intervenção que fiz no Parlamento, no final de 2007, foi sobre a violência nas praxes. Seis anos depois, esse exercício de poder e a impunidade continuam a ser a regra, se não dentro, à porta das Universidades.

O que dizia o relatório parlamentar de 2008 sobre as praxes

Por iniciativa do Bloco de Esquerda, a Comissão de Educação e Ciência da Assembleia da República discutiu as praxes e recolheu contributos do meio académico. Mas as conclusões e propostas concretas nunca foram seguidas pelos governos.

Cinco mitos em torno das praxes

O historiador Rui Bebiano regressa a um tema que conhece bem para colocar em causa cinco mitos sobre as praxes: os da “tradição”, “simpatia popular”, “aceitação pelos caloiros”, “prestígio para as instituições” e “integração ou preparação para a vida”. Artigo publicado no blogue “A Terceira Noite”.

Debates sobre a Praxe: balanço dos Prós e Contras

O debate sobre a praxe que surgiu, como uma avalanche, nos media e redes sociais nas últimas semanas apresenta poucas novidades e corre sérios riscos de deixar tudo na mesma, apesar de, pela primeira vez, ter interpelado toda a sociedade e todos os responsáveis, das associações de estudantes ao Primeiro-ministro.

Duas memórias da praxe

A praxe está na berlinda e não é por ser uma versão sofisticada do jogo do berlinde. Para fazer “jogo abaixo”, recordo duas vivências nas duas faculdades por onde passei: o Instituto Superior Técnico e Letras de Lisboa.

A Volta da Praxe

Em meados da década de 1990, a praxe e a “tradição académica” já estavam disseminadas no ensino superior público e privado. Esta reportagem de Luísa Costa Gomes, publicada em 1996 na revista Grande Reportagem, parte dessa realidade para recuar aos últimos séculos da história das praxes em Portugal.

Coimbra não é vossa

Para quem não está a ver como é a vida na cidade que viu nascer a tal de praxe, passo a  narrar. Quinze dias do ano em particular, e muitas das terças e quintas em geral, as leis por aqui não são iguais para todos. Artigo de João José Cardoso, publicado no blogue Aventar.

A praxe coimbrã no fim da ditadura

Este artigo do historiador Miguel Cardina, publicado em 2008 na Revista Crítica de Ciências Sociais, relaciona os movimentos estudantis dos últimos anos da ditadura com as mutações então ocorridas no terreno da praxe académica em Coimbra.

O Manifesto Anti-Praxe de 2003

Em 2003, o Movimento Anti-Tradição Académica juntou-se ao coletivo Antípodas e à República das Marias do Loureiro para lançar um desafio a personalidades de dentro e fora do meio académico: juntarem-se pela primeira vez numa tomada de posição pública contra as praxes.

Receber ou praxar?

O jogo de semântica inerente à distinção entre praxes-que-são-praxes e praxes-que-não-são-praxes é tão inútil quanto revelador da incapacidade da praxe se auto-regular ou sequer olhar para dentro de si mesma.

A praxe é uma aventura

Música anti-praxe composta e interpretada pelo duo Azeitivinagre em 2010.

Praxistas defendem "direito à humilhação"

Praxistas defendem a humilhação como forma de integração na universidade e na vida activa, num debate na Aula Magna, em Lisboa, depois da projeção do filme "Praxis".