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“T-Rocando” os passos à AutoEuropa

A AutoEuropa foi pensada para acolher a produção de modelos de nicho de mercado, e não para modelos de grande volume. Artigo de Hugo Arsénio Pereira
A AutoEuropa foi pensada para acolher a produção de modelos de nicho de mercado, e não para modelos de grande volume
A AutoEuropa foi pensada para acolher a produção de modelos de nicho de mercado, e não para modelos de grande volume

Antes de mais, um pouco de História: a AutoEuropa foi pensada para acolher a produção de modelos de nicho de mercado, e não para modelos de grande volume, tendo nascido no início dos anos 90 da parceria entre a Ford Europa e o Grupo Volkswagen. Foi inicialmente projectada para uma capacidade máxima de produção de cerca de 180 mil carros/ano.

Nos mais de 20 anos de existência foi-lhe sempre atribuída, por essa razão, e também devido ao facto da AutoEuropa ser não apenas uma fábrica mas um cluster industrial que alberga uma panóplia de empresas e de fornecedores de componentes, a produção de modelos de nicho de mercado: inicialmente monovolumes do segmento D (VW Sharan, Seat Alhambra e Ford Galaxy) aos quais se juntaram, posteriormente – quando a Ford se retirou da joint venture, deixando a unidade industrial para o Grupo Volkswagen em exclusivo – o descapotável VW Eos e o desportivo VW Scirocco que tiveram prestações comerciais modestas, aquém das expectativas iniciais. Prova disso é que nenhum destes modelos teve ou terá sucessor directo, como no caso dos dois últimos, seja devido às vendas, ou por pertencer a segmentos de mercado que estão a mirrar rapidamente e a ser substituídos por outros, como é o caso dos grandes monovolumes familiares.

À semelhança de quase todos os construtores – seja os de grande volume, seja os de mero nicho, seja os de luxo, seja os emergentes, seja os de menor volume que estão mais interessados em breakeven’s que garantam sustentabilidade e lucro do que em grandes volumes de produção e venda que às vezes dão prejuízo por unidade produzida -vendida -, a Volkswagen percebeu que as preferências dos consumidores viraram-se nos últimos anos para a tipologia dos crossovers e SUV’s que gradualmente estão a tomar o lugar e engolir as quotas de mercado das tipologias e segmentos mais tradicionais ou hoje vigentes. O novo T-Roc produzido agora pela AutoEuropa é um excelente exemplo disso.

A receita é muito mais simples e menos sofisticada do que o que aparenta, mas satisfaz igualmente consumidores e construtores. Porquê? Porque com o T-Roc, e à semelhança de outros tantos modelos com as mesmas tipologias técnicas (não interessa se são pequenos e espartanos ou grandes e luxuosos) em quase toda a indústria, a VW limitou-se a pegar na sua nova estrutura técnica modular e flexível a vários formatos/ dimensões/ aptidões/ motorizações, na variante da plataforma MQB (que serve de base a uma miríade de modelos, desde o Polo – que já não é pequeno, parecendo antes um compacto – até ao mastodonte Atlas que não é vendido na Europa) subiu-lhe a suspensão 10 ou 15 cm para dar maior altura ao solo e aparência mais robusta e off-road, desenhou uma nova carroçaria com apliques de plástico nas cavas das rodas e no cárter e um look mais atrevido desvinculado do habitual desenho mundano que Wolfsburg costuma aplicar a tudo o que encontra pela frente no seu catálogo, aumentou-lhe ligeiramente as dimensões exteriores, aproximando-as do segmento C, e sem diferenças substanciais em termos de equipamento ou de qualidade percepcionada face ao Polo que lhe serve de base, aplicou-lhe igualmente preços do segmento acima “primo” Golf que é o automóvel mais vendido na Europa há décadas (fala-se num preço-base de €25 mil)… et voilà: está criada uma receita de sucesso com uma das mais apetecíveis margens de lucro para um construtor de grandes volumes a partir de um modelo que começou por ser de um segmento de nicho mas que actualmente ombreia com os mais vendidos em vendas!

O que é que isto significa? Significa que, obviamente, o construtor e as demais empresas do cluster que funcionam em torno da fábrica tiveram naturalmente de fazer um avultado investimento de reconversão das linhas de produção para poder produzir um modelo totalmente novo que poucos ou nenhuns componentes mecânicos deverá partilhar com os modelos que se retiram agora de cena, mas que, em contrapartida, partilha uma parte significativa de elementos mecânicos (e outros) com 80 ou 90% do catálogo, não apenas da Volkswagen, mas de quase todo o Grupo (Seat, Skoda, Audi).

Significa, que se a fábrica deixa de produzir vários modelos de nicho que muitas vezes, somados, não atingiram sequer metade da capacidade máxima de produção da unidade, substituindo-os por um modelo apenas que se posiciona numa franja de mercado em verdadeira explosão comercial que ameaça “comer” outras tipologias de automóveis e vários segmentos de mercado em simultâneo, obviamente que tem que haver uma readaptação do modelo de funcionamento da fábrica, e que indiscutivelmente isso trará consequências ao nível do funcionamento dos turnos, ao nível da formação, ao nível salarial, etc.

Mas a questão que se coloca é: se o Grupo Volkswagen sabia de antemão que tudo isto comportaria enormes alterações para a fábrica, porque é que isso não se reflectiu, por exemplo, em igual proporção ao novo aumento de produção/demanda em termos de novas contratações? Porque é que o Grupo Volkswagen preferiu antes reforçar os turnos de produção e fazer um “restyling” à forma de funcionamento dos turnos laborais vigentes?

A resposta é muito mais simples do que o aparenta ser e do que aquilo que nem os media nem os sindicatos falam: porque, não obstante as críticas que se possa [ou não!] fazer, quer anteriormente à comissão de trabalhadores, quer à actual posição da comissão sindical, a verdadeira questão é que, após o acentuado declínio de vendas durante a última crise, após ver-se ultrapassada pela Toyota e pela aliança Renault-Nissan como #1 a nível mundial, e após as consequências financeiras do escândalo conhecido como “Dieselgate”, a VW decidiu engavetar uma série de projectos que tinha em carteira e concentrar-se naqueles que trariam sobretudo boas margens de lucro mais rápidas. E o T-Roc foi concebido para espremer o máximo possível nesse aspecto: ao nível da concepção, ao nível do dúbio posicionamento de mercado upmarket e ao nível da produção – bons volumes de produção e vendas, máxima partilha possível de componentes, produção (mais cara do que nas unidades eslovaca ou húngara, é certo, mas) mais barata do que nas unidades fabris espanholas, alemãs ou belgas, por exemplo.

E é ao nível da produção que o Grupo Volkswagen tomou opções que levaram, legitimamente ou não, ao actual impasse que desembocou na greve de trabalhadores em cima da estreia da nova coqueluche do construtor alemão.

Poderia a AutoEuropa ter reforçado a contratação de novos trabalhadores, redistribuindo-os pelos novos turnos para dar conta da demanda que o novo modelo terá face ao ritmo que a fábrica tinha até agora? Podia. Sobretudo, tendo a garantia de que o T-Roc é um modelo com um retorno financeiro mais rápido do que um Polo ou um Passat, mesmo que venda menos do que estes. Mas preferiu pedir aos actuais trabalhadores que trabalhassem 6 dias por semana, incluindo dias de fim-de-semana, com um diferente sistema de folgas rotativas face ao actualmente vigente, mesmo com compensação salarial extra da qual os trabalhadores desconfiam. Porque o Grupo Volkswagen sabe que essa solução é muito mais barata do que fazer novas contratações que respondam à adivinhada demanda do novo T-Roc.

No entanto, a narrativa que fica e que vai sendo mediatizada e popularmente comentada é a de que os trabalhadores estão a exigir demais do que o que deveriam, de que não querem trabalhar, de que nos centros comerciais ou nos call-centers também se trabalha for turnos com folgas rotativas e “ninguém morreu/eu não morri por causa disso”, ou de que haverá sempre quem queira fazer os 6 dias/semana ou os sábados se os actuais trabalhadores não quiserem, perpetuando o salazarento ideário laboral em Portugal, revestido de neoliberal nos últimos anos, e que traduzido, significa que “o outro é sempre mais preguiçoso do que eu mesmo que eu esteja a meramente esfolar-me por migalhas mensais” e que infelizmente tão enraizado está na mentalidade de tantos trabalhadores portugueses, não diferindo muito da lógica que leva tantos trabalhadores do sector privado, por exemplo, a recusar-se exigir as 35 horas semanais também para si, preferindo invejosamente “malhar” em cima daquilo que os outros no sector público reconquistaram – justificando a posição com o pensamento de que “grão a grão, podemos até ser pobrezinhos, mas seremos sempre mais honrados, porque perante o outro fica sempre bem parecer que trabalhamos mais horas do que ele e que, por conseguinte, trabalhamos mais do que ele”.

E porque a AutoEuropa e quem subscreve esta narrativa miserabilista apoia-se no peso que esta tem no PIB nacional para fazer todo o tipo de chantagens ideológicas, se o Grupo Volkswagen vencer esta batalha, será através do ainda maior reforço desta trapaceira narrativa no imaginário colectivo e não por eventualmente “derrotar” as organizações e as actuais exigências dos trabalhadores da AutoEuropa.

Artigo de Hugo Arsénio Pereira, publicado no blogue acontradicao.wordpress.com

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