Espanha

Sánchez vai embora na segunda-feira e a culpa é de quase toda a gente

25 de abril 2024 - 17:06

O primeiro-ministro espanhol anunciou uma “reflexão” sobre a continuidade à frente do Governo após um juiz ter avançado com a investigação à sua mulher por denúncias de supostas ilegalidades apresentadas pela extrema-direita. Neste artigo, o politólogo e fundador do Podemos defende que a alternativa à saída de Sánchez seria a viragem à esquerda.

por

Juan Carlos Monedero | Público.es

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Pedro Sánchez
Pedro Sánchez. Foto La Moncloa/Flickr

É (quase) óbvio que o Presidente Pedro Sánchez se vai embora na segunda-feira. Há sempre ângulos de sombra nas decisões humanas, mas tentemos, com a ajuda da ciência política, traçar causas e efeitos e procurar exemplos no ensino da história. É claro que uma decisão desta magnitude tem a ver com opiniões pessoais, mas um profissional como Sánchez não dá ponto sem nó:

1. Porque não o fazer deixa-o como um fanfarrão que finta e não marca, como no soneto de Cervantes: “E logo, incontinente, / enterrou o chapéu, mexeu na espada, / olhou de soslaio, foi-se embora, e não houve nada”. E o principal valor de futuro de Sánchez é a imagem que lhe é devolvida pelo seu espelho mágico. Dizer que vai deixar a política e não o fazer enfraquece-o.

2. Porque a única possibilidade do seu regresso na segunda-feira implicaria regressar pela esquerda com a manifesta oposição de Felipe VI e das elites do poder espanhol. O Pedro Sánchez regressado deveria reformar sem medo o Conselho Geral do Poder Judicial (CGPJ); reformaria a lei da mordaça; reforçaria as políticas sociais - salários, pensões, licenças, etc. -, recuperando todo o tempo perdido; manteria os impostos sobre os bancos, as empresas energéticas e as grandes fortunas; reconheceria a Palestina e exigiria um cessar-fogo a Israel, bem como a sua responsabilização no Tribunal Penal Internacional; devolveria o Podemos ao governo numa pasta forte (e pediria desculpa não só por não ter defendido os morados [1] quando sofreram o que ele sofre hoje, mas também por ter feito parte dos que os atacaram. E digo-o na primeira pessoa).

3. Porque assim o PSOE tem mais hipóteses de ir às eleições catalãs e bascas apresentando-se como a força que sofre e quer travar o fascismo (Pablo Iglesias tentou fazê-lo em Madrid e foi gozado). Não é muito credível que o PSOE recupere de repente o seu ar de esquerda e decida enfrentar os juízes de extrema-direita de imediato, porque não quiseram renovar o CGPJ e procuraram sempre o PP com a intenção de recuperar o bipartidarismo. Estamos a falar do PP de Feijóo, que já tinha veraneado com um narcotraficante.

4. Porque em novas eleições gerais, sob o signo da vitimização, tiraria quase todos os votos à sua esquerda -Ay Sumar!- e até alguns à sua direita.

5. Porque este governo está sem muitas ideias, sem capacidade para fazer avançar as leis, com Sumar a subtrair, Podemos sem poder, e a pagar um preço muito alto por uma amnistia em que parece ser Puigdemont que amnistiou Sánchez.

6 Porque Adolfo Suárez e Felipe González já se foram e esta geração do espetáculo, à qual Sánchez pertence, é movida por séries e filmes heróicos.

7. Porque o declínio do PSOE só pode ser resolvido com uma grande tragédia épica contra a malvada direita e os seus malvados apoios judiciais (que, curiosamente, são os mesmos com quem quis fazer um pacto quando faziam ao Podemos as mesmas coisas que lhe fazem agora e tudo, nessa altura, estava bem).

8. Porque a direita levou a cabo golpes de Estado sempre que não esteve no governo e a sociedade avançava. Fê-lo em 1936; fê-lo no 23F de 1981; e fê-lo com o Podemos. Os ataques de hoje são ainda resíduos da negação do PP em aceitar que perdeu as eleições, que a esquerda do PSOE entrou no governo e que a esquerda pró-independência se juntou à governação do Estado.

9. Toda a solidariedade para com Pedro Sánchez, pessoalmente, e para com o seu direito de defender a sua família. É verdade que, no seu tempo, disparou sem piedade contra os morados. Não importa. Porque o ataque a Sánchez enfraquece toda a democracia e devemos estar inabaláveis no apoio contra esta denúncia. O Mãos Limpas é uma escumalha com provas dadas - o seu fundador esteve preso por extorsão - e o juiz que a aceitou ficará do lado dos juízes que são a vergonha da justiça em Espanha (como o recente juiz que prendeu os marionetistas [2] e que deixou escapar um traficante italiano, ou Escalonilla, que se imiscuiu nas eleições perseguindo o Podemos, tal como García-Castellón, que funciona mais como político do que como juiz. Ou o CGPJ, à margem da Constituição durante os últimos cinco anos). Também é verdade que o comportamento dos meios de comunicação social amigos do PSOE convida à desconfiança. Esta manhã, Àngels Barceló entrevistou o antigo presidente José Luis Rodríguez Zapatero na rádio SER, num tom íntimo e emotivo. No calor da entrevista, Barceló recordou que Sánchez não estará presente no primeiro comício da campanha catalã e, entusiasmada com o convite de Zapatero para apoiar Sánchez, encerrou: “Sánchez não estará lá, mas Zapatero vai lá estar! Da mesma forma, García-Ferreras, que publicou conscientemente informações falsas sobre o Podemos, que se gabava de matar os seus líderes e que fazia de altifalante de Inda [3] e do OK Diario, passou todo o dia de ontem a semear a ideia de que Pedro Sánchez estava muito zangado. Que gente como Ferreras intervenham neste drama, é algo que provoca inquietação.

10. Por último, e aqui tenho a minha bola de cristal desmagnetizada, penso que Sánchez se vai embora porque, na política real, ficamos a saber metade da metade do que realmente se passa. Não há crise no PSOE (o que seria uma causa objetiva para a sua demissão, como a história mostra), mas, no entanto, os escândalos estão a voltar ao PSOE, e isso faz descarrilar os projetos políticos (como o PP de Gürtel [4] bem sabe). O PP e o PSOE sempre tiveram uma espécie de acordo, mas o PP rompeu-o devido às suas adesões autoritárias e quer meter na cadeia o maior número possível de políticos do PSOE (como quis meter na cadeia políticos do Podemos e também no passado pessoas da Izquierda Unida, e o PSOE não se importou). Há sempre coisas que só eles sabem. Mas fazem sempre parte da mesma coisa. As zonas mal iluminadas estão lá e, certamente, se fossem conhecidas, a fé na democracia em Espanha enfraqueceria.

11. Sem dúvida, o ataque do PP, dos seus juízes e dos seus esquadristas do Mãos Limpas derruba a democracia. A saída de Sánchez seria, sem dúvida, uma reminiscência dos ataques a Costa em Portugal, demitido sem culpa e substituído pela direita, a prisão ilegal de Lula no Brasil, substituído por Bolsonaro, ou o lawfare sofrido por muitos líderes em muitas partes do mundo (substituídos por Macri, Milei, Lasso, Noboa, etc.). A discussão não é sobre o preço pessoal a pagar por fazer política (noutros lugares matam-nos ou os EUA prendem-nos), mas sim se não está na altura de assumir que as nossas democracias estão a esvaziar-se. A discussão tem de ir um pouco mais longe do que o facto de um líder ter um momento de fraqueza. Tem de ir até à raiz.

Por todas estas razões, acredito, embora o futuro nunca esteja escrito, que vêm aí eleições de novo, porque uma moção de confiança é coisa pouca para uma ameaça tão retumbante de demissão, a menos que venha acompanhada de uma clara viragem à esquerda. Sejamos firmes, pois, contra os inimigos da democracia e também suficientemente lúcidos para não sermos marionetas de ninguém.


Notas:

1 - NT: Roxos, a cor do Podemos

2 - NT: Em 2016, dois marionetistas foram detidos e acusados de “apologia ao terrorismo” por causa duma peça de fantoches exibida no Carnaval de Madrid.

3 - NT: Eduardo Inda, jornalista e apresentador de tertúlias, diretor do Ok Diario, um site de notícias conhecido por participar na “guerra suja” contra o Podemos, a partir de material cedido pelo ex-comissário José Manuel Villarejo.

4 - NT: O "caso Gürtel" foi a investigação a um esquema de adjudicações de contratos públicos com contrapartidas de financiamento a dirigentes, autarcas e ao próprio PP, que acabou condenado em tribunal, precipitando uma moção de censura que levou à queda do governo de Mariano Rajoy e à primeira investdura de Pedro Sánchez em 2018.


Juan Carlos Monedero é politólogo, fundador e ex-dirigente do Podemos. Artigo publicado no seu blog no Publico.es. Traduzido por Luís Branco para o Esquerda.net.