A questão catalã e a radicalização crescente do bloco das direitas

13 de novembro 2023 - 22:43

Os debates sobre a investidura e a Lei da Amnistia darão a medida do alcance da retórica golpista da direita espanhola e da instabilidade política que será desencadeada num contexto europeu e internacional cada vez mais autoritário, reacionário e militarista. Por Jaime Pastor.

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Extrema-direita pede a prisão do líder do PSOE na manifestação deste domingo em Madrid.
Extrema-direita pede a prisão do líder do PSOE na manifestação deste domingo em Madrid. Foto Vox/Flickr

Depois do acordo celebrado com a ERC a 2 de novembro, o assinado esta quinta-feira, 9 de novembro, pelo PSOE com o Junts para garantir o voto de investidura de Pedro Sánchez como Presidente do Governo e até para "assegurar a governabilidade" na nova legislatura, está a gerar uma maior radicalização do bloco das direitas. Este salto já se tornou evidente através das redes sociais e da maioria dos meios de comunicação social, das mobilizações de massas e, sobretudo, da beligerância do poder judicial, mas também da confederação patronal CEOE e de outros grupos de pressão. As suas descrições das "concessões" feitas pelo PSOE como um "golpe de Estado" semelhante ao 23F, "ditadura", "abolição do Estado de direito" ou "conspiração destituinte" (a FAES de Aznar dixit), somadas ao já clássico "Espanha está a partir-se" e ao "governo ilegítimo" (e agora "ilegal" na boca do Vox), não correspondem ao conteúdo real destes acordos, mas estão a fomentar um clima político em que os grupos de extrema-direita e abertamente neonazis, apoiados pelo Vox e por um sector do PP, estão a adquirir um protagonismo que até agora não tinham alcançado.

Este novo cenário de deslegitimação antecipada da investidura mostra, uma vez mais, que a mera vontade de abordar a resolução do "conflito histórico sobre o futuro político da Catalunha" através da "política em democracia", e não através do Código Penal, entra abertamente em choque com um nacionalismo espanhol excludente e punitivista que continua a predominar neste regime e num amplo sector da sociedade espanhola. Inclui também uma parte importante da velha guarda e do eleitorado socialista, com o barão García-Page de Castilla-La Mancha (PSOE) à cabeça, como vemos agora. Abre-se assim uma nova fase de agravamento da crise do regime que ameaça instalar-se definitivamente no período em que vamos entrar com a nova legislatura.

Uma nova oportunidade?

Se nos centrarmos no documento assinado pelo PSOE e pela Junts, verificamos que este se baseia no "relato sintético" de alguns factos inegáveis descritos na primeira parte, incluindo a constatação de que estes conduziram ao facto de "uma parte significativa da sociedade catalã não se sentir identificada com o sistema político vigente em Espanha", a persistência da anomalia de que "a decisão do TC em 2010 implicou que a Catalunha é a única comunidade autónoma com um estatuto que não foi votado na sua totalidade pelos seus cidadãos", e a existência de "múltiplos processos judiciais, muitos deles ainda por resolver, que afetam um grande número de pessoas". No entanto, são reconhecidas "discrepâncias estruturais" entre as duas formações políticas, o que não impede que se chegue a acordos sobre "a metodologia de negociação" (com um "mecanismo internacional de acompanhamento, verificação e controlo") e sobre o "conteúdo dos acordos a negociar", em relação aos quais mantêm posições opostas, quer sobre o referendo, quer sobre o sistema de financiamento.

Na realidade, é a Lei da Amnistia - cuja versão final ainda não conhecemos, mas que se anuncia que "deve abranger tanto os responsáveis como os cidadãos que, antes e depois do referendo de 2014 e do referendo de 2017, tenham sido alvo de decisões judiciais ou processos ligados a estes acontecimentos" - que é o único acordo concreto que emerge deste documento. Há ainda uma menção ao conceito de lawfare que se centraria em "comissões de inquérito a criar na próxima legislatura" para tratar de casos relacionados com as "cloacas do Estado" e a operação Pegasus, mas é de recear que, dada a celeuma judicial que levantou, não tenha qualquer efeito prático.

Afinal de contas, nem o "compromisso histórico" desejado por Puigdemont foi alcançado, nem a sua contribuição para a "estabilidade da legislatura" está garantida, uma vez que esta dependerá do progresso dos acordos sobre questões fundamentais como o reconhecimento nacional da Catalunha e o referendo, por um lado, e um novo modelo de financiamento, por outro, sobre os quais ambas as partes têm posições muito diferentes, como é explicitado no documento.

O bunker judicial

Além disso, é preciso ter em conta que a aprovação e, sobretudo, a aplicação da Lei da Amnistia vai percorrer uma corrida de obstáculos; primeiro no Senado e depois no poder judicial (com um Supremo Tribunal que, nas palavras do seu Presidente em exercício, se encontra numa "situação crítica, quase em respiração assistida", para não falar de um Conselho Geral da Magistratura que não é renovado há quase cinco anos), o que permitirá o prolongamento no tempo de uma estratégia de confronto trumpista por parte da direita espanhola, e sem que se veja qualquer estratégia alternativa, para além do parlamento, por parte das forças políticas e sociais que poderiam apoiar esta lei.

Neste contexto, não parece que a "integração" da maioria do movimento independentista catalão no regime através da Lei da Amnistia e da abertura das mesas de negociação - que é o que está por detrás das concessões feitas por Sánchez não por convicção, mas para "fazer da necessidade uma virtude" - se concretize facilmente. Este processo dependerá de um longo percurso e, sobretudo, da abertura efetiva de um caminho para o reconhecimento consequente da plurinacionalidade, ou seja, da existência de diferentes demoi com direito a decidir o seu futuro, por parte de um PSOE que considera isso uma linha vermelha que não pode ultrapassar. Continuará também a enfrentar a oposição de um bloco reacionário que continua a controlar as principais alavancas do poder do Estado, com a monarquia à cabeça, que se agarra à leitura mais fundamentalista possível do artigo 2º da Constituição sobre a indissolubilidade e indivisibilidade da "nação espanhola" (isto é, do Estado-nação espanhol) e que nem sequer se sente confortável com a menção de "nacionalidades" que aparece no mesmo artigo; Não é por acaso, como foi recentemente recordado, que os fundadores da Alianza Popular, precursora do PP, já se opunham à inclusão deste termo. Para uma grande parte deste bloco, o horizonte a alcançar é o regresso às suas posições originais do final do período franquista, mesmo que se queira revestir de um discurso de "igualdade entre espanhóis" que procura esconder as profundas desigualdades provocadas pelas suas políticas em tantos domínios, incluindo o autonómico, como a praticada por Díaz Ayuso, determinada a transformar Madrid num verdadeiro paraíso fiscal.

Os debates sobre a investidura e a Lei da Amnistia darão a medida do alcance da sua retórica golpista e da instabilidade política que será desencadeada num contexto europeu e internacional que continua a ser marcado pela ascensão de um neoliberalismo cada vez mais autoritário, reacionário e militarista, sendo o Estado de Israel a expressão extrema desta tendência.

"Este é um novo começo. Assim estamos em 2006", disse o ex-primeiro-ministro Rodríguez Zapatero, grande apoiante de Pedro Sánchez, recordando o ano em que se iniciou o processo da reforma, que acabou por ser frustrada, do Estatuto de Autonomia da Catalunha. Bem, recorrendo a uma frase bem conhecida, tememos que, desta vez, o que acabou em tragédia se repita como farsa... Seria melhor que, se quiserem evitá-lo, prestassem atenção a um dos últimos conselhos de Manuel Sacristán, em 1985, e se convencessem de que:

Só a passagem por esta exigência aparentemente utópica de uma autodeterminação plena e radical, com o direito à separação e à formação de Estados, nos dará uma situação limpa e boa. Quer se trate de um Estado federal ou de quatro Estados. Todas as técnicas políticas e jurídicas que possam ser aplicadas para fazer algo diferente disso nunca produzirão um resultado satisfatório[1].

O desafio que temos pela frente é, pois, não recuar perante a ofensiva reacionária e criar as condições para uma remobilização social que permita avançar na obtenção de novas conquistas políticas, eco-sociais e culturais. Para isso é condição essencial não se subordinar à política do mal menor de um governo que estará sob a hegemonia reforçada do PSOE, com aliados necessários como o PNV e o Junts. que serão um travão às suas leis progressistas, e no quadro de uma União Europeia que, exceto nas despesas militares, anuncia novos cortes nos próximos anos.


Jaime Pastor é politólogo e diretor da revista Viento Sur. Artigo publicado em Viento Sur. Traduzido por Luís Branco para o Esquerda.net

Nota:

[1] "Manuel Sacristán Luzón: 'O PSOE traiu a esquerda'", Mundo Obrero, 28/02/1985.