“Somos um país atolado na areia.” Esta observação foi feita por Mario Draghi, governador do Banco de Itália e futuro presidente do Banco Central Europeu, após a esmagadora derrota do presidente do Conselho italiano e dos seus aliados da Liga do Norte – a Lega– nas eleições municipais. Será que a burguesia financeira, também ela1, considera que chegou o tempo de terminar o ciclo Berlusconi iniciado há 17 anos?
A 30 de Maio, cerca de um terço das cidades com mais de 15.000 habitantes controladas pela coligação berlusconiana – composta pelo partido do chefe de governo, o Povo da Liberdade (PDL) e pela Lega –passaram para a oposição de centro-esquerda. Das 133 comunas envolvidas, já não controla mais do que 38 (contra 55 antes da eleição). O centro-esquerda dirige agora 83 (contra 73 no mandato precedente). Na ressaca, o Cavaliere e o seu partido, mas igualmente a Lega, perdem cidades emblemáticas: Milão, Nápoles, Cagliari ou Novara no Piemonte.
Como pano de fundo desta sequência eleitoral, uma severa crise económica e social que afecta um país já atingido pelos escândalos de Silvio Berlusconi, por múltiplos casos de corrupção e por uma fragilização contínua das instituições democráticas.
A situação económica não poderá explicar, só por si, os resultados deste escrutínio e a natureza de uma crise política profunda e multi-dimensional. No entanto, coloca-se a hipótese que a aceleração da degradação das condições de existência de milhões de italianos e de italianas tenha pesado nos resultados.
Publicado a 23 de Maio (entre a primeira e a segunda volta das eleições), o último relatório do Instituto Nacional de Estatística (Istat) consagrado à “Situação do país em 2010” indica logo de entrada que “na década 2001-2010, a Itália teve o pior desempenho de todos os países da União Europeia”. O desemprego atingiu 532.000 pessoas mais no período de 2008-2010, tendo a taxa de desemprego aumentado de 6,7% para 8,4% da população2. Facto novo e mais grave, “o aumento atingiu todas as classes sociais e o conjunto dos territórios. E mais, o desemprego de curta duração observado no período 2008-2009 transformou-se, em 2010, em desemprego de longa duração”.
A esta situação junta-se a explosão da precariedade, especialmente entre os jovens de 18 a 29 anos, cuja taxa de desemprego atinge quase 42%. Em 2008, 6 jovens em cada 100 eram precários; em 2009, são 16 em cada 100 (mais de um milhão de pessoas no total, ou seja 30,8%).
Por fim, o endividamento das famílias aumentou 1,9% em Dezembro de 2010 e 2,6% em Janeiro de 2011, num contexto de aumento dos preços no consumidor, especialmente nos produtos alimentares e nas despesas com energia. O Instituto conclui, moderadamente, que 15 milhões de pessoas “em risco de pobreza ou de exclusão” vivem no seio da sua célula familiar.
Existem por conseguinte motivos objectivos para o descontentamento popular... Este certamente atingiu o governo, mas também todo o sistema bipolarizado. Constata-se assim uma subida da abstenção (40% na segunda volta, contra cerca de 32% na primeira) e movimentos abertamente contestatários da classe política em geral, como o Movimento 5 Stelleanimado pelo humorista Bepe Grilo. Este último captou em média cerca de 5% dos votos na primeira volta, com “picos” de 10% a 15%. Além disso, a 30 de Maio foram eleitos candidatos “atípicos” em Milão e Nápoles, que tinham afastado os representantes do Partido Democrata (PD), nas primárias organizadas no seio das coligações de centro-esquerda antes das eleições (Giuliano Pisapia em Milão) ou no final da primeira volta (Luigi de Magistris em Nápoles). E isto, com base num discurso radical de renovação das práticas políticas e democráticas.
A vitória dos social-democratas deriva em primeiro lugar da importante erosão do voto pro-Berlusconi. Após esta derrota, o presidente do Conselho decidiu nomear para a chefia do seu partido o jovem ministro da Justiça, Angelino Alfano. A este é assim confiada a difícil missão de enfrentar as eleições legislativas de 2013, quando até a aliança do PDL com a Liga do Norte3 arrisca a fragilizar-se num futuro próximo.
Por sua vez, alguns dirigentes do PD sonham com uma “nova Oliveira”, adoptando novamente uma estratégia que conduziu o partido ao fiasco dos últimos anos. Na sua ideia, essa coligação reuniria, sob a direcção dos democratas, as forças centristas da Itália dos Valores (a formação do juiz Antonio Di Pietro) e do Terceiro pólo (Terzo Polo). Juntar-se-ia a ela o partido de esquerda “Sinistra Ecologia Libertà” (Esquerda Ecologia Liberdade) do popular presidente da região da Apúlia, Nichi Vendola. Por seu lado, a Refundação Comunistapreconiza a construção de uma “Frente Democrática” sem o centro.
Mas a democracia italiana também parece estar a regenerar-se. De facto, a curto prazo poderá consagrar uma nova expressão da implicação popular na vida pública, e isto fora da eleição de partidos. A 12 e 13 de Junho, os italianos serão chamados a pronunciar-se por via de um referendo sobre três assuntos de primeira importância: a revogação de dois decretos-lei em vigor relativos à privatização da gestão da água nas comunidades e a ter em conta os interesses dos accionistas privados nas suas tarifas; a possibilidade de anular as disposições legais que autorizam o Estado a construir novas centrais nucleares; a supressão de artigos da chamada lei do “Legittimo impedimento”, talhada à medida para Berlusconi, que permite ao presidente do Conselho e a certos ministros não se apresentarem em processos penais.
Uma forte participação – 50% dos votos mais um são necessários para dar ao resultado do referendo um carácter obrigatório – e um voto orientado para a defesa do interesse público sugeririam que a democracia está talvez a caminho da revitalização em Itália.
Christophe Ventura
Artigo publicado no site do Monde Diplomatique a 10 de Junho de 2011, tradução de Carlos Santos para esquerda.net
1 Uns dias antes, a 26 de Maio, o presidente da organização do patronato industrial (a Cofindustria), Emma Marcegaglia, declarava: “a prioridade para o nosso país é o crescimento, depois de dez anos perdidos por causa de divisões e rivalidades entre os responsáveis políticos dos dois lados, que têm posto as suas ambições à frente do interesse geral do país”.
2 O Norte de Itália é significativamente atingido com uma contracção do emprego de 1,9% nestes dois últimos anos, o que representa 228.000 pessoas lançadas no desemprego nesta região motora da economia do país que parecia até então relativamente preservada.
3 Ler «Survivance berlusconienne», La valise diplomatique, décembre 2010.