Morte de Khadafi elimina factor que unificava rebeldes

21 de outubro 2011 - 14:34

A Líbia é um país ferido e dividido, com um ente como o Conselho Nacional de Transição que mostrou incapaz até agora de pactuar a formação de um governo. Por Eduardo Febbro, correspondente da Carta Maior em Paris

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Quem poderá acreditar que tanta gente em armas aceitará amanhã que uma maioria surgida das urnas imponha a sua vontade?

A Nato e os seus aliados terrestres, os rebeldes líbios, terminaram oferecendo ao mundo a cabeça do coronel Khadafi, em tela grande, alta definição, com muito sangue e algazarra para que as imagens imponham o consenso com a sua veloz frivolidade. Quarenta e dois anos de um reinado megalomaníaco, cínico e ditatorial, marcados por dois períodos contraditórios, terminaram graças ao furacão desatado pelo desejo de liberdade surgido no Mediterrâneo e já conhecido como a Primavera Árabe.

Nesta aspiração à democracia e à liberdade, a Líbia é uma excepção: na Tunísia e no Egipto, as armas estavam de um lado e o povo do outro. Ben Ali, na Tunísia, e Mubarak, no Egipto, foram apeados do poder por uma revolução de massa, espontânea e irrenunciável que lançou ao mar dois déspotas apoiados pelo Ocidente. O fim de Kadafi começou em Fevereiro com uma revolta popular semelhante e fechou-se com as armas com as quais o Ocidente apoiou a sempre obscura rebelião líbia.

Na Líbia, as armas estavam dos dois lados e pesaram no desenlace final tanto como pesou o cinismo de Khadafi e o do Ocidente na manutenção de um regime delirante e opressor. Houve uma época em que Khadafi era o inimigo número um do “mundo civilizado” porque apoiava o terrorismo, e houve outra época em que o coronel firmou contratos milionários para a exploração de petróleo, recebeu boas notas do FMI e passou a ser um aliado obediente do Ocidente na luta contra o terrorismo. Lavou o seu passado com petróleo e os emissários de Londres, Roma, Berlim, Moscovo, Paris, Washington ou Madrid reintegraram-no ao círculo das nações decentes.

O petróleo tudo pode, inclusive comprar a pronto os valores com os quais a Europa e os Estados Unidos constroem a sua legitimidade.

Um terceiro ditador saiu do mapa. A Líbia amanhece hoje com um problema a menos e também com outro que não tinha antes. E agora? Ninguém pode perder a lucidez a ponto de pensar que a democracia é o próximo passo. Isso é impossível num país sem a mínima cultura democrática e onde todos os protagonistas da revolta estão armados. Os antagonismos entre os membros do CNT (Conselho Nacional de Transição) são muito profundos. Além disso, a guerra não propiciou a emergência de um líder forte e os riscos de uma divisão do país são ainda mais fortes, uma vez que já estavam presentes antes da guerra. Há, de facto, duas entidades geográficas bem definidas: toda a região de Trípoli, a Tripolitana, são terras khadafistas muito arraigadas, enquanto que o Leste, a Cirenaica, é um mundo à parte, cuja capital, Benghazi, foi o epicentro da rebelião, a primeira a cair e a primeira sede do CNT.

O mais complicado vem agora. A morte de Kadafi tira o único motivo pelo qual os rebeldes podiam ter uma causa comum. Berberes das montanhas, islamistas moderados do Leste, salafistas exaltados, profissionais e intelectuais que romperam o exílio, estudantes partidários de Khadafi – eles existem e são muitos –, habitantes de Misrata que combateram quase sem ajuda do céu – a Nato – as hordas khadafistas: os actores são muitos, todos querem uma parte do produto do saque, todos pagaram um alto tributo na guerra e não há nada nem ninguém que os unifique.

A Amnistia Internacional já denunciou oportunamente as execuções e violações de todo tipo perpetradas pelos rebeldes. A Líbia é um país ferido e dividido, com um ente como o Conselho Nacional de Transição que mostrou incapaz até agora de pactuar a formação de um governo. O panorama é tão sui generis que o primeiro ministro Mahmud Jibril já adiantou que renunciaria ao cargo uma vez que a Líbia “fosse libertada”. Como no Iraque e no Afeganistão, o Ocidente preparou a guerra, mas não modelou a paz. Bagdade e Cabul continuam a ser um teatro sangrento.

A Nato pode terminar a sua missão “de protecção dos civis”, segundo o mandato que lhe deu a ONU, mas, na verdade, a Aliança utilizou-o para acabar com o regime. Quem poderá acreditar que tanta gente em armas aceitará amanhã que uma maioria surgida das urnas imponha a sua vontade?

O Ocidente continuará a jogar as suas cartas. Os negócios no horizonte são monumentais: petróleo, infra-estruturas, telecomunicações, etc., etc. Talvez as potências apostem naqueles que possam garantir os melhores contratos, os apoiem com novas armas e se imponham assim, pela força, o nascimento de uma nova Líbia, sob a bota do vencedor. O “guia supremo” foi suprimido. Na Líbia não há sistema político, nem sindicatos, nem sequer uma Constituição. Há, sim, uma consistente quantidade de armas. Muitas das quais o Ocidente vendeu a Khadafi, mas entregou à oposição. O futuro parece traçado. A menos que ocorra um milagre, a guerra continuará.

Tradução: Marco Aurélio Weissheimer