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Maçariku, traficante de sonhos

Morreu no dia 1 de Agosto Vítor Ribeiro (Maçariku), fundador da Associação Abril em Maio e da Casa da Achada – Centro Mário Dionísio. Artigo de Pedro Rodrigues.
Vítor Ribeiro, o Maçariku, foi um dos principais impulsionadores da associação cultural Abril em Maio e da Casa da Achada, em Lisboa.

O Maçariku gostava de máquinas. Máquinas de luz, de imagem, de som. Câmaras, projectores, gravadores e até instrumentos musicais que não sabia tocar. Dava aos amigos, mostrava, usava, trocava nas feiras. A feira da ladra de Lisboa em primeiro lugar, claro. A feira já não será a mesma sem o Maçariku, esse passador de coisas e de ideias. E as coisas para ele não eram só objectos para coleccionar - tinham ideias lá dentro. Trocar, passar, presentear. Traficante de sonhos e de objectos, contrabandista de ferramentas de transformação para dar sentido a um mundo onde não se pode passar sem um bocadinho de tristeza. Mas não é tristeza para ficar parado. Pode ser uma caixinha de música para ajudar nos combates.

Uma maneira de estar

Contra o empobrecimento da vida, ele provocava. Militante, mas antimilitarista (o "Tropa Não!"). Pela diferença, anti-racista. Contra os chefes, antifascista. Pela igualdade, mas nunca a das paisagens lisas, porque ele era adversário da "normalidade".

O Maçariku ensinou de tudo a toda gente. Mas ensina-se uma maneira de estar? Uma maneira de estar intensamente na vida, sem separar acção e pensamento, sem desligar as técnicas das ideias, sem opor a militância e o sonho, sem apartar as pessoas e as máquinas, as crianças e os adultos, os vinhos e as letras, sem saber afastar a cultura da política e amizade da luta. Saber fazer e dar sentido a esse fazer. Contra o empobrecimento da vida, ele provocava. Militante, mas antimilitarista (o "Tropa Não!"). Pela diferença, anti-racista. Contra os chefes, antifascista. Pela igualdade, mas nunca a das paisagens lisas, porque ele era adversário da "normalidade". Podia dizer "o que tem de ser tem muita força", mas cinismo não, cinismo nunca. Rugosas cidades de antagonismo e solidariedade, de combates e passagens, de barricadas e revoluções, de amigos e de toda a gente ainda por conhecer, de cafés e ruas, e ruas e ruas e ruas. Lisboa, como a palma da sua mão.

Com o corpo todo

Rigorosamente desobediente, o Maçariku falava uma língua só dele, cheia de interjeições, olhares, esbracejares, esgares, gritos, uivos, sussurros. Ele gritava com o corpo todo para nos acordar. Mas sussurrava as palavras mais importantes. Não sabia esconder o seu olhar atento por detrás do cabelo (que olhos bonitos!), nem a barba escondia o seu sorriso aberto, desafio constante ao mundo tristonho.

Levanta a pedrinha

Antagonista revolucionário das opções fechadas, das dominações fora e dentro da cabeça, dos caminhos fáceis do marketing. Fazemos então muito mais, muito mais transformador. E convidamos aqueles também, provocamos aqueloutros também, vamos conhecer gente que faça. Que saiba fazer porque vive. Que saiba pensar porque faz. "Levanta a pedrinha, oooooo!..." Porque, para além da amizade, era a transformação do mundo nas lutas da história o critério da sua indisciplinada disciplina. Nas lutas grandes e pequenas. E as pequenas são enormes, decisivas, entusiasmantes e belas.

Maçarico

Um pássaro das regiões costeiras? Um jovem que ainda não sabe tudo? Uma ferramenta com chama? Sabe-se lá. A gente só sabe que a sua última máquina parou - o coração. A vida vai: "Bute, bute!"

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