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Itália: Os sintomas alarmantes de uma explosão social

O que está a ocorrer nestes últimos dias com as mobilizações e os “levantamentos” dos chamados “forconi” indica que entrámos numa nova fase da crise económica e social na Itália. Por Franco Turigliatto
“Nas ruas de Turim, podia-se reconhecer grupos de jovens de direita, provenientes das claques das equipas de futebol; além disso, estavam bem representados a Forza Nuova e a CasaPound, e eram numerosos os slogans e os comportamentos claramente fascistas e reacionários”

[Nos últimos dois dias, diferentes meios de comunicação não italianos perceberam uma mudança sociopolítica em Itália bastante mais importante que a nomeação de Mateo Renzi, presidente da câmara de Florença, para líder do Partido Democrata. No dia 12 de dezembro, o correspondente do semanário francês “Le Point” escrevia: “De Palermo a Turim, de Roma a Génova, de Savona a Milão, um vento de protesto sem precedentes varre a Itália. A interrupção do metro na capital, o encerramento das lojas nos centros antigos das cidades, a ocupação de estações e mercados, as concentrações diante dos palácios institucionais, as operações de bloqueio nas fronteiras: desde o domingo passado, as manifestações contra a 'casta política' multiplicam-se na península”. Neste artigo que publicamos, Franco Turigliatto sublinha com razão o peso concreto, visível por exemplo na capital piemontesa Turim -antiga capital da Fiat, das forças da extrema direita e as cumplicidades existentes entre estas últimas e uma parte da polícia e da magistratura. – Nota da Redação de A l' encontre]

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O que está a ocorrer nestes últimos dias com as mobilizações e os “levantamentos” dos chamados “forconi” [que brandem as forquilhas] indica que entrámos numa nova fase da crise económica e social no nosso país. Mobilizam-se setores da pequena e média burguesia golpeados muito duramente pela crise nos seus interesses e nos seus rendimentos: os comerciantes, os vendedores ambulantes, os camionistas. Somaram-se a eles outros setores sociais populares mais ou menos marginais: jovens dos bairros urbanos degradados, desempregados ou estudantes. Estes fenómenos são particularmente evidentes e conflituais em Turim, a velha cidade operária e fordista que, para além do novo escaparate turístico que significam os palácios do centro, se encontra numa grande fase de pauperização e de prostração social.

A crise e a pequena burguesia

Estes sectores da pequena burguesia -com os seus diferentes estratos - gozaram durante muitos anos de uma relativa tranquilidade e conforto (para alguns, isso foi conseguido graças a diversas formas de evasão fiscal), mas hoje, após seis anos de uma crise económica aguda, as suas certezas sociais e económicas são postas em causa e para muitos deles abre-se a possibilidade, a curto prazo, de uma queda na pobreza. Esses sectores são golpeados não só pelas dinâmicas da crise económica mas também, como para a grande maioria de cidadãos e cidadãs, pelas políticas de austeridade e de contração orçamental aplicadas pelos governos da burguesia.

Desde há anos, estas políticas massacram em primeiro lugar, e antes de mais, os trabalhadores e trabalhadoras dos setores privado e público que sofrem cortes nos salários, no emprego, com a destruição de postos de trabalho e no chamado estado social. Estes “sacrifícios” foram exigidos permanentemente pelas políticas neoliberais cuja única função é garantir os lucros e os rendimentos do patronato, da grande burguesia como classe e dos seus membros em particular. Para assegurar essa transferência de riqueza de baixo para cima, a classe dominante “reclama” hoje a amplos setores da pequena burguesia que “participem nos sacrifícios”, o que empobrece essas camadas sociais intermédias que, no entanto, são fundamentais para garantir o statu quo social e político.

O verbo inglês “squeeze” indica a ação simultânea de apertar e de extrair o sumo. Esse verbo traduz de forma ativa no que se refere à classe trabalhadora. Mas diz respeito também às camadas da pequena burguesia e determina a sua desintegração social.

E isso constitui um dos traços distintivos das grandes crises económicas que se transformam assim em crises políticas e sociais que produzem contradições e feridas em todos os estratos da sociedade. É por isso que falamos de uma mudança de época na Europa.

A crise na cidade de Turim

Em algumas cidades, entre elas Turim, o fenómeno apresenta-se sob formas particularmente dramáticas: a cidade do mundo do trabalho, noutra época rica e com uma classe operária ativa, sofreu profundas transformações. Em poucos anos, o desemprego atingiu toda a região do Piemonte, o que implica não só centenas de milhares de pessoas no desemprego, mas também, um grande número de “cassa integrati” (pessoas que perderam o seu emprego mas recebem uma parte do seu salário, fruto das conquistas dos começos dos anos 1970).

É evidente que a pequena burguesia, antes de mais a comercial nas suas diversas facetas, afetada já pela crise não podia senão, inclusive sem ter uma consciência exata disso, sofrer uma redução das suas atividades comerciais e dos seus rendimentos como consequência do simples facto de que um grande número de assalariados perderam o seu salário ou viram-no reduzido e foram obrigados a reduzir o seu consumo. A crise que golpeou primeiro os assalariados não podia deixar de repercutir-se nos comerciantes que, entretanto, apesar da fraude fiscal de alguns deles, tiveram que fazer frente às reduções orçamentas das entidades nacionais e locais, que devem ser os atores em última instância das medidas de austeridade decididas pelo governo.

Além disso, antes existia uma verdadeira delimitação e planificação dos pontos de venda, mas agora a quase total liberalização do comércio e o poder enorme das grandes marcas de distribuição puseram de joelhos todo o pequeno comércio local, começando pelos vendedores ambulantes [os mercados locais têm uma grande importância em Itália], esmagados pela concorrência dos centros comerciais, mas também golpeados pela concorrência sem freio entre eles próprios.

Esses comerciantes encerram as suas lojas e renascem como cogumelos com novas atividades, ainda que com o risco de voltar a encerrá-las perante a impossibilidade de garantirem um rendimento suficiente. Mas há outro fenómeno que deve ser compreendido. Muitos desses pequenos comerciantes (comércios, bares, etc.) saíram da classe operária. De facto, muita das pessoas no desemprego, entre as quais um grande número de jovens e de antigos assalariados, juntaram todas as reservas financeiras familiares para pôr de pé um pequeno negócio a fim de obter um rendimento. E depois deram-se conta de que não era suficiente para viver.

Em Turim, nestes últimos dias, o encerramento das lojas foi total, seja em consequência da decisão dos seus proprietários, seja pelo efeito de grupos ativos ligados aos organizadores da greve que circularam permanentemente pela cidade para impor a todos os comerciantes o fecho da porta.

A intervenção das forças da direita

Naturalmente, todos estes fenómenos socio-económicos enfrentam a intervenção e a orientação política das associações profissionais especializadas na criação de uma ideologia e de uma identidade segundo as quais a figura social do trabalhador/a independente garantiria a riqueza da Itália. Partindo daí, quase todos os demais são “ladrões”: não só o pessoal político, mas também os assalariados do setor público, que são parasitas, bem como, inclusive, os assalariados do setor privado que disporiam do “privilégio” da “cassa integrazione”. Portanto, torna-se fácil gerar a divisão entre os setores populares que atravessam grandes dificuldades e fazer emergir uma revolta qualunquista [corrente política italiana de direita que tem traços antiparlamentares e antiestatais, cuja revista Uomo qualunque -o homem ordinário- conheceu uma audiência eleitoral em 1946; há similitude com o poujadismo francês].

As forças de direita e de extrema direita estão muito presentes e ativas através de quem compõe o comité de greve de Turim e de quem dirige a dinâmica do protesto, logicamente confusa. Nas ruas da cidade, podia-se reconhecer grupos de jovens de direita, provenientes das claques das equipas de futebol; além disso, estavam bem representados a Forza Nuova [organização neofascista fundada em 2003 cujo presidente, Roberto Fiore, foi deputado europeu em 2008-2009] e CasaPound [centro social neofascista e nacionalista-revolucionário criado em Roma em dezembro de 2003; o termo Pound faz referência ao propagandista do fascismo Ezra Pound], e eram numerosos os slogans e os comportamentos claramente fascistas e reacionários. Numerosos jovens, frequentemente dos bairros degradados, utilizaram esta jornada como uma possibilidade de expressar as suas frustrações sociais e o seu descontentamento. Ao mesmo tempo, viu-se que existia uma encenação e uma organização precisa da jornada. Outros elementos testemunham um certo entendimento que não só tem a ver com a simpatia pelos manifestantes por parte das forças da ordem, mas que remete para uma relação política organizada com as forças da extrema direita.

Neste contexto distinguiu-se a atitude diligente da magistratura de Turim que no início destas mobilizações tinha dado ordem de levar a cabo um amplo registo dos ativistas do movimento No TAV [movimento popular do vale de Susa contra a construção de uma linha de comboio de alta velocidade], registo que conduziu à detenção de quatro jovens a quem foi posto o qualificativo de “terroristas” (sic).

A pequena burguesia e as forças de direita

É mais que evidente que estas classes sociais em vias de pauperização -na rua estavam presentes antes de mais vendedores ambulantes e camadas inferiores do setor do comércio- e a grande massa dos desempregados podem converter-se numa base de massas das forças ultrarreacionárias e fascistas. O potencial de radicalização reacionária dos sectores da pequena burguesia implica grandes perigos para a classe operária. Esta situação pode tomar uma configuração muito nociva por causa da ausência, desde há algum tempo, de um forte movimento de massas e de lutas da classe operária. A responsabilidade das direções sindicais, cúmplices dos governos dos banqueiros e da grande burguesia, é aqui imensa.

De facto, só uma forte mobilização operária e de classe pode impedir derivas reacionárias. Para responder positivamente ao que se está a desenvolver é necessário que o movimento sindical e dos trabalhadores, apoiando-se nos sectores mais dispostos para a luta, construa rapidamente uma ampla iniciativa na base da defesa do salário, do emprego e de uma política económica diferente que possa dirigir-se ao conjunto das massas trabalhadoras e, também, a uma parte destes setores da pequena burguesia e, antes de mais, aos desempregados e desempregadas. Para isso é necessária uma greve geral. Se uma greve assim já tivesse tido lugar, pelo menos uma parte dos jovens que ontem (9 de dezembro) saíram à rua teria tido uma boa e diferente ocasião de expressar a sua raiva.

Seria uma ilusão perigosa, como alguns que desvariam na esquerda, considerar estas mobilizações como precursoras de uma real luta positiva contra as políticas de austeridade e os governos que as aplicaram. Pensar que a pequena burguesia e as camadas mais marginais do proletariado, na época da mundialização capitalista, ao contrário do que tem acontecido sempre ao longo da história e em particular na grande crise europeia dos anos 1930, possam formar um projeto alternativo ao grande capital tem a ver não só com uma ilusão, mas também é um erro dos mais perigosos, que pode abrir o caminho a verdadeiras e reais tragédias políticas.

Como escrevia Trotsky, a pequena burguesia, esse pó humano - um grande número de indivíduos não organizados nos lugares e nas fases da produção e da distribuição, mas que em última análise depende das relações sociais que traduzem - não tem nem a função nem a força social e política para expressar um projeto alternativo ao das classes dominantes. As classes sociais intermédias entre as duas classes fundamentais continuam a ser, em última instância, atraídas pela que demonstre mais força no terreno. Hoje como ontem, a burguesia pode utilizar setores da pequena burguesia e dos desempregados - como o fez o fascismo- como aríetes contra a classe operária. Trotsky acrescentava, em 1930: “Em cada viragem da história, em cada crise social, há que reexaminar o problema das relações existentes entre as três classes da sociedade atual: a grande burguesia com o capital financeiro à cabeça, a pequena burguesia que oscila entre os dois campos principais, e, finalmente, o proletariado. A grande burguesia que não constitui mais que uma fração ínfima da nação não pode manter-se no poder sem se apoiar na pequena burguesia da cidade e do campo, isto é sem apoio entre os últimos representantes das antigas camadas médias, e entre as massas que constituem hoje as novas camadas médias”. Prossegue: “Para que a crise social possa desembocar na revolução proletária, é indispensável, além de outras condições, que as classes pequeno burguesas balancem de forma decisiva para o lado do proletariado. Isso permite ao proletariado tomar a cabeça da nação, e dirigi-la. As últimas eleições revelam uma tendência em sentido inverso e é aí que reside o seu valor sintomático essencial. Sob os golpes da crise, a pequena burguesia tem oscilado não para o lado da revolução proletária, mas para o lado da reação imperialista mais extremista, arrastando camadas importantes do proletariado”. Depois afirma de forma incisiva: “Se o partido comunista é o partido da esperança revolucionária, o fascismo enquanto movimento de massas é o partido do desespero contrarrevolucionário” (León Trotsky, “A viragem da Internacional Comunista e a situação na Alemanha” 27/09/1930).

A importância da luta dos trabalhadores

Só a capacidade e o protagonismo, a força e a luta das massas trabalhadoras pelos seus próprios objetivos de salvaguarda das suas condições de vida e de trabalho podem converter-se num pólo atraente para setores da pequena burguesia ou, pelo menos, neutralizar setores dela no decurso do confronto agudo com a classe dominante. É uma das tarefas urgentes que se encontra ante nós e que faz da retoma do conflito nos locais de trabalho, ainda que muito difícil, um elemento necessário e possível.

Estamos diante de uma questão de tempo. O movimento operário e sindical deve recuperar. De um lado, não deve demonizar certos setores sociais como tais, aliando-se assim à política do Partido Democrata e às direções sindicais, que têm subordinado as trabalhadoras e os trabalhadores às orientações da grande burguesia. Do outro lado, deve estar consciente de que esse movimento dos “forconi” é dirigido por forças reacionárias e de direita que devem ser combatidas.

Por essa razão, os membros de classe operária - e em particular as forças da esquerda anticapitalista - devem começar a sua própria luta, a revolta de classe contra os governos dos pacotes de austeridade, isto é contra a classe burguesa.

Artigo de Franco Turigliatto, líder da Sinistra Anticapitalista, publicado em anticapitalista.org e em A l'encontre a 10/12/2012. Tradução de Faustino Eguberri para vientosur.info e de Carlos Santos para esquerda.net

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