Está aqui

Uma agenda não-condescendente para o debate da dívida e do euro

A resistência à bancarrota só se pode organizar na luta contra a dívida, com a proposta de um compromisso político para uma maioria que rejeite e termine o Memorando.

1. O problema português é democrático. Esse problema é a resposta democrática à chantagem da dívida e a austeridade que dela resulta, com efeitos sociais que destroem Portugal. Esse é o problema dos problemas.

2. Se não vencer a dívida, Portugal viverá um período de desagregação social, impulsionada pela transferência de rendas financeiras garantidas sobre os impostos presentes e futuros, acentuando assim o projeto liberal de imposição de perdas crescentes do trabalho para o capital.

3. Foi na resposta ao problema da dívida que se organizaram as duas grandes mudanças na política portuguesa no último ano: o Congresso das Alternativas, que mobilizou plataformas de resposta política contra a dívida, e as duas manifestações Que Se Lixe a Troika, que mobilizaram convergências populares contra a dívida.

4. Nenhuma dessas mudanças teria sido possível com outra plataforma de entendimento que não fosse a rejeição da chantagem da dívida. Qualquer outra escolha enfraquecia e dividia. Foi por inteligência política e vontade unitária que estas plataformas contra a bancarrota foram construídas da forma mais abrangente e mobilizadora. Abandonar, desvalorizar ou dividir esses processos seria desastroso para a esquerda.

5. No fim do Ano Dois da Troika, a resistência à bancarrota só se pode organizar na luta contra a dívida, com a proposta de um compromisso político para uma maioria que rejeite e termine o Memorando. Qualquer desvalorização deste esforço unitário é um erro.

6. Para formar uma maioria de esquerda contra o Memorando, ou seja um governo que rejeite a austeridade e abata a dívida em nome dos salários, dos serviços públicos e do investimento, é preciso um compromisso de aliança. O governo de esquerda contra a troika será a forma dessa aliança. Para trabalhar para esse governo, é preciso derrubar a coligação PSD-CDS, conseguir eleições e apresentar ao povo uma solução viável que mude o panorama político atual. Para mudar esse mapa, é preciso concentrar força onde os partidos se devem entender e se devem comprometer: a rejeição da dívida.

7. Não haverá nenhuma aliança vitoriosa possível se a sua plataforma for a saída do euro. Como a estratégia do Syriza na Grécia demonstrou, a luta pelo governo de esquerda tem uma bandeira, a rejeição da dívida. Como a experiência do Syriza demonstrou, a direita e o centro radical usarão o medo da saída do euro como argumento político principal porque é esse medo que pode fazer bascular as eleições. Como a experiência do Syriza demonstrou, só se avança para um governo de esquerda com rigor tático, com clareza de proposta de aliança e com concentração do argumento onde ele é decisivo: a dívida.

8. Há imenso trabalho a fazer para aproximar posições e para articular propostas. A esquerda, no passado, fez pouco trabalho de proposta e de articulação. Deve fazê-lo o mais depressa e o mais intensamente possível. Só o pode fazer se o caminho for a rutura com a dívida e a austeridade. Esse caminho é viável e pode construir uma aliança possível.

9. A proposta exuberante de um Plano A (federalismo) e de um Plano B (saída do euro se não houver federalismo) desvaneceu-se do debate político português. Essa proposta tinha como pressuposto que a melhor solução para Portugal e para a Europa era a constituição de um Estado Europeu, sob a forma federal, ou seja, que Portugal deveria ser uma província desse Estado, evidentemente liderado pelo governo alemão. Essa solução não é nem a melhor nem é assim-assim: seria um retrocesso histórico do qual Portugal só recuperaria com um conflito de alta intensidade pela sua independência. Os defensores desta ideia abandonaram-na. Ainda bem.

10. A proposta federalista é ainda um logro porque nem a duplicação do orçamento para 2%, por exemplo, nem a gestão de uma moeda única exigem necessariamente um governo europeu de um Estado europeu. Exigem certamente regras comuns e cooperação reforçada. Ora, a proposta federalista quer impor à esquerda a submissão a um projeto autoritário da burguesia europeia. A esquerda que se opõe ao federalismo porque é europeísta não pode nem deve desistir da luta em escala europeia, sem ficar à espera de um recuo das forças do centralismo federalista, porventura iluminadas pela sensatez social contra os seus interesses sociais. Tem de as vencer.

11. Para conseguir uma nova relação de forças europeia é preciso que sejam eleitos governos de esquerda, fieis aos trabalhadores que os mandatam. Para conseguir o governo de esquerda é preciso saber para onde se vai e onde se deve concentrar a pressão, porque este caminho exige clarificar alternativas para mudar partidos e políticas. Toda a pressão deve estar na exigência aos partidos de que apresentem um plano para a anulação da dívida, por via da negociação europeia ou, se necessário for, da imposição unilateral da moratória e de anulação de dívida.

12. O governo de esquerda não será constituído pelo centro nem por uma nova conformação das forças políticas do centro. Enquanto perdurar o compromisso de um partido com o Memorando, a direção desse partido será sempre um impedimento ao governo de esquerda. A sensatez de uma política de esquerda baseia-se neste convicção: para vencer é preciso querer vencer e saber vencer, é preciso recusar a renda financeira que está a estrangular os salários, pensões e serviços públicos. O governo de esquerda exige que a esquerda tenha uma política de esquerda. O problema democrático de Portugal é a chantagem do capital financeiro e é contra o capital financeiro que se deve determinar o governo de esquerda.

13. Qualquer proposta de manutenção do Memorando produzirá um governo seguinte pior do que o atual. Não há austeridade inteligente. Não há meia-austeridade. Um novo governo que aceite a chantagem financeira criará mais austeridade e mais destruição, porque cada dia a imposição da Troika será pior: como já ficou evidente, a sua solução para o incêndio da austeridade é soprar nas brasas para aumentar o lume. Ou, como dizia alguém com a autoridade de experiência na negociação com a Troika, quando estamos no buraco exigem que continuemos a cavar.

14. A hipótese bondosa de um alívio das condições da chantagem financeira depois da reeleição de Merkel, ou de um renascimento europeu depois de Setembro de 2013, é uma ingenuidade. Qualquer conformação política do futuro governo alemão, incluindo se Merkel tiver que se aliar ao partido social-democrata, o SPD, manterá a selvajaria financeira. O presidente do Eurogrupo, que é o ministro das finanças da Holanda, é a prova viva de como estes social-democratas liberais se assumem como a cavalaria prussiana de Merkel. Um novo governo em Portugal não pode contar com facilidades das instituições europeias, tem de contar com o seu povo e com os seus aliados das esquerdas populares na Europa.

15. O governo de esquerda deve apresentar um compromisso categórico: no dia em que toma posse, terá a legitimidade eleitoral reforçada para declarar o Memorando sem efeito e iniciar negociações para abater a dívida. Se a proposta de cancelamento de dívida não for aceite pelas autoridades europeias, a melhor resposta será a imposição unilateral de uma moratória dos pagamentos da dívida, a negociação com os vários credores de uma troca de dívida por títulos de valor inferior e vinculado aos crescimento futuro, e o controlo de capitais. Como o fracassado haircut da Grécia demonstrou, se as autoridades europeias não se vergarem ao abatimento da dívida que detêm, será pela sua mão que o capital financeiro continuará a cobrar a sua renda.

16. O governo de esquerda precisa de ter a força suficiente para impor uma revolução fiscal, criando os meios para uma reorganização do sistema produtivo, incluindo a reindustrialização para o emprego, a substituição de importações, a reconversão energética e ambiental e uma concentração de investimentos nesse sentido. Mais uma vez, essa política económica ataca o capital financeiro.

17. Nesse contexto, o governo de esquerda deve estar preparado para todo o conflito, incluindo para a pressão que force uma saída do euro. Em A Dividadura, livro que publiquei em 2012 com Mariana Mortágua, escrevemos com clareza: “no contexto atual, a saída do euro é a pior de todas as soluções e só pode ser imposta por vontade do diretório europeu. Ora, só se pode aceitar a pior das soluções quando não exista rigorosamente nenhuma outra, quando se esgotarem todas as alternativas, quando a sobrevivência o exigir. Só há por isso uma condição em que a saída do euro se pode tornar necessária para o povo português, e essa situação não pode ser liminarmente excluída: se, perante um descalabro das instituições e das regras europeias, a sua independência for posta em causa e Portugal não tiver outra solução que não seja abandonar a União Europeia e, em consequência, o euro, para recuperar a capacidade de decisão. E é ainda necessário que a maioria da população esteja empenhada nessa resposta, de modo a condicioná-la pela força dos movimentos populares e da defesa dos interesses do trabalho.” Mantenho o mesmo ponto de vista. Devemos preparar-nos para tudo, incluindo para a pior das soluções, se ela vier a ser a única possível.

18. Não acredito que possa haver saída facilitada do euro. Não se devem esperar gentilezas para amparar Portugal numa saída do euro. Não se deve esperar que o governo alemão autorize um novo empréstimo, desta vez incondicional e em valores porventura iguais ou superiores aos do primeiro resgate, de modo a favorecer assim a política de um governo de esquerda se este tiver de escolher sair do euro. Mesmo se o governo alemão quiser impor essa saída não é provável que a financie mas antes que procure fazer dela um exemplo negativo. Essa hipótese de um acordo de cavalheiros parece politicamente inviável. Na liderança europeia não há cavalheirismo, há interesses sociais sumamente autoritários.

19. Uma saída do euro conduzida sob as ordens de Merkel ou de um governo de direita significaria uma luta de classes sem quartel contra os trabalhadores, para transformar e acelerar o processo de acumulação de capital com o benefício exclusivo de uma parte da oligarquia. E não dá nenhuma garantia de anulação de dívida; pelo contrário, nesse caso, esta opção poderá ser uma forma de acentuar a transferência de rendimentos do trabalho para o capital através de uma austeridade que acelera o ajustamento violento. A esquerda que se confundir com esta hipótese não merecerá sobreviver politicamente, porque passará para o lado da austeridade e da selvajaria. Quem defende a saída do euro sem anulação da dívida não consegue resolver o problema democrático de Portugal.

20. Na luta contra a dívida, se o governo de esquerda for forçado a sair do euro tem de ter do seu lado o povo, mobilizado para rejeitar a ameaça de Merkel e do capital financeiro e disposto a levantar-se pela democracia. Os efeitos de uma saída do euro são tão profundos que ela só pode ser justificada por uma emergência nacional precipitada pela violência externa e só pode ser gerida por um governo que crie um enorme consenso nacional sobre essa decisão. Essa questão política será sempre fundamental, dado a pressão e as dificuldades que a condução desse processo implicará. Só o poder democrático do povo assegura a força para fazer as escolhas necessárias nesse contexto. Quem ignora essa ameaça e esses riscos de alta intensidade não está preparado para governar sequer um mês.

21. O confronto de um governo de esquerda com o capital financeiro é mal servido pelos que acham que um mero slogan faz uma política. Por isso, acho fundamental que quem queira trabalhar na preparação de um novo governo de esquerda apresente uma proposta não-condescendente, considerando todas as eventualidades, sobre as melhores alternativas para cada problema que se possa vir a colocar no desenvolvimento desse governo, incluindo a saída do euro para a desvalorização do novo escudo.

22. Esse estudo sobre como contrariar os efeitos negativos de curto e de médio prazo de uma eventual saída do euro inclui necessariamente:

a) a constatação de que Portugal corre o risco de que a nova moeda, o escudo, seja durante alguns meses meramente escritural, restando a possibilidade de fazer as suas transações internas em moeda estrangeira, cuja circulação tenderá a diminuir e que depende de um banco central europeu com o qual o país pode vir a estar em conflito;

b) os riscos de que haja duas moedas a circular no país por um longo período e de que se erga um movimento especulativo contra o escudo;

c) a perceção de que os depositantes se sentirão ameaçados e prejudicados e reagirão procurando retirar os seus depósitos em euros dos bancos;

d) a constatação de que o impacto imediato do aumento do preços das importações, depois da desvalorização do escudo, só será compensado na balança comercial algum tempo depois por um aumento das exportações, que dependem de encomendas;

e) a constatação de que as exportações são perigosamente sensíveis ao clima político, ao ciclo económico e às regras de financiamento, que terão restrições;

f) a constatação de que as taxas de juro tenderão a subir, com efeitos na distribuição interna do rendimento em desfavor dos devedores, ao mesmo tempo que a inflação atingirá níveis desconhecidos nos últimos anos, o que também tem efeitos redistributivos em desfavor dos salários e pensões;

g) a redefinição legal dos valores das dívidas internas, incluindo das dívidas hipotecárias, e os efeitos dessa redefinição nos balanços dos bancos;

g) a noção de que os bancos poderão entrar em falência pelo aumento do valor em moeda nacional das suas dívidas externas e que, se forem nacionalizados, a dívida pública externa também aumentará significativamente;

h) o estudo das formas de redistribuir por toda a sociedade os benefícios que a desvalorização concede ao sector exportador;

i) a readequação institucional, incluindo do funcionamento do Banco de Portugal e da CGD, bem como da administração do sistema financeiro.

23. Esse estudo inclui ainda as condições políticas e europeias para a decisão de um governo de esquerda:

a) a verificação das maiorias necessárias para tomar a eventual decisão de saída do euro, registando o poder do presidente e a necessidade de uma maioria parlamentar que possa eventualmente superar o seu veto;

b) a definição do novo modelo de câmbios num contexto de conflito com as autoridades europeias e da sua eventual hostilidade à inclusão de Portugal no regime europeu dos países que estão fora do euro;

c) a verificação de que o Estado pode reivindicar judicialmente o poder soberano para redenominar as suas dívidas na moeda nacional, mas que as empresas e os bancos não têm esse poder legal e que, portanto, os seus balanços serão prejudicados;

d) a redefinição das relações com a União Europeia, em particular para permitir políticas protegidas de industrialização, de criação de emprego e de renacionalização de bens comuns estratégicos ou fundamentais para a gestão orçamental.

24. Há respostas, por difíceis que sejam, a todas estas ameaças e questões. Nenhuma dessas respostas está num slogan. O slogan é inútil e não substitui a preparação detalhada da resposta aos problemas económicos e sociais. O slogan é uma bandeira. É legítimo fazer política com uma bandeira. Mas uma bandeira não faz um governo. Não se pode desistir de criar um governo de esquerda para procurar responder ao problema democrático de Portugal, que é a dívida. Uma estratégia vitoriosa depende por isso de um trabalho profundo de preparação de respostas e que constate as dificuldades para lhes fazer frente.

25. O realismo é uma condição da inteligência. Todas as respostas realistas exigem uma política económica como Portugal não teve mas precisa de ter: controlo do crédito, intervenção pública no sistema financeiro, fiscalidade mobilizadora de recursos, estratégia para o emprego. Não é realista aceitar a chantagem da dívida nem é realista opor-lhe soluções irrealistas.

26. A minha conclusão é esta: a única agenda que pode criar uma maioria de esquerda é a luta contra a dívida. Um governo de esquerda só pode ganhar se constituir uma aliança e essa aliança exige a clareza da anulação de dívida. Esse governo deve estar preparado para rejeitar todas as pressões do capital financeiro e para tomar todas as medidas que sejam necessárias nesse sentido, incluindo sair do euro se essa for a única solução que sobrar. Essa preparação exige trabalho detalhado e cuidadoso, juntando muitos dos e das melhores economistas de esquerda. Esse trabalho está por fazer. É melhor começar já.

Publicado originalmente na edição portuguesa do Monde Diplomatique, maio de 2013

Este artigo está traduzido em espanhol (em vientosur.info) e em inglês (em internationalviewpoint.org).

Sobre o/a autor(a)

Professor universitário. Ativista do Bloco de Esquerda.
Comentários (4)