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As promessas perdidas do TTIP: mais comércio com menos emprego?

Morto e enterrado? Os futuros episódios dirão do quem e do porquê do recente recuo, sendo certo que a obstinação ideológica pelo mercado livre e canonizado habitará os debates que importam.

Morto e enterrado? O TTIP (Acordo de Parceria Transatlântica de Comércio e Investimento entre a União Europeia e os Estados Unidos) já conheceu melhores dias, e dirão os otimistas que os recentes anúncios de Hollande e de Sigmar Gabriel parecem antecipar um obstáculo real para o projeto de um bloco europeu transformado em reino menor da ordem liberal. O fantasma deste corpo estranho já havia pairado nos corredores do Brexit: a perda de 16% do PIB da União e da principal praça financeira do mercado comum baralha o que já era complicado. Os futuros episódios dirão do quem e do porquê deste recuo, sendo certo que a obstinação ideológica pelo mercado livre e canonizado habitará os debates que importam.

Lembremos que o TTIP carrega consigo três promessas centrais: equiparar a finança e as multinacionais ao estatuto de agentes institucionais, dando-lhes poder para processar os Estados caso as leis nacionais interfiram com os seus lucros (a exemplo da Philip Morris que processou o Uruguai pelas suas leis anti-tabaco); nivelar os direitos ambientais e laborais pela bitola americana, abrindo a porta a práticas destrutivas como o fracking; retirar barreiras alfandegárias e fiscais ao comércio transatlântico, elevando a concorrência no novo espaço. Das duas primeiras temos já críticas certeiras e aprofundadas sobre os seus perigos, mas é na obsessão pelo livre comércio que a conceção deste projeto resistirá em outros sucedâneos, como o anunciado CETA - Comprehensive Economic and Trade Agreement, um acordo entre a União Europeia e o Canada que promete acalentar as promessas perdidas do TTIP.

O aumento do comércio internacional como meio para o desenvolvimento económico e aumento do emprego tem sido apresentado como uma das soluções contra a estagnação das economias europeias. O FMI tem insistido na crítica à imposição de barreiras comerciais no cenário pós-crise financeira, quando na verdade, como têm defendido muitos economistas, o que assistimos é a uma onda deflacionária alimentada pela desigualdade crescente, "enquanto o dinheiro sobe [para os mais ricos], a procura desce [para a maioria da população]". Não obstante, a defesa liberal encanta-se pela letra dos novos tratados. Face ao impasse, a Comissão Europeia apressou-se em assegurar a continuação das negociações e a lembrar os efeitos positivos do TTIP na criação de melhor empregos e salários. Mas será mesmo assim?

O estudo mais relevante sobre os efeitos do TTIP, realizado a pedido da própria União Europeia, antecipa que num cenário extremo de total levantamento das barreiras comerciais, o PIB do conjunto europeu possa obter um incremento de 0,5% até 2027. Não por acaso, os autores abdicam de projetar a criação de empregos neste período, remetendo para a miragem tricle-down: mais comércio, mais riqueza, mais emprego. Uma projeção tão medíocre expõe, pelo contrário, os objetivos reais do TTIP. As tarifas comerciais entre os Estados Unidos e o espaço europeu já são historicamente baixas (à volta dos 4%), o que faz com que qualquer variação no dólar tenha mais impacto no fluxo económico do que este pequeno alívio fiscal. Por isso, as baterias tem sido concentradas nas chamadas Barreiras Não Tarifárias (BNT), as famosas quotas que, num exemplo prático, limitam a importação de cana de açúcar de forma a proteger a produção e comércio de beterraba no espaço intra-europeu. Não se trata de comércio, mas sim do poder de fazer as regras.

O sonho é "modelar" a economia em sectores chave, como a agricultura, os serviços públicos ou a propriedade intelectual, recorrendo a um protecionismo dos de cima sempre que necessário, concentrando e prolongando as patentes farmacêuticas, por exemplo. Nesta engenharia, a criação de emprego é um indicador menor, pois a certeza está na destruição de muitos postos de trabalho em meio ao ambiente de austeridade. Como demonstra um estudo que releva o aumento das importações em sectores menos qualificados da economia europeia por força da aposta exportadora - que tem sido, de resto, um problema alemão bem identificado - o impacto de destruição do TTIP pode chegar aos 700 mil desempregados.

Tarde ou cedo, a disputa por uma soberania emancipadora enfrentará este obstáculo.

Sobre o/a autor(a)

Sociólogo, dirigente do Bloco de Esquerda e ativista contra a precariedade.
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