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O tempo que passa: sinais da catástrofe iminente

Para se construir um Governo de esquerda que tenha a força de vencer a chantagem da dívida e se imponha como o produto de uma luta social vigorosa é preciso a clareza de uma agenda de confronto – nacionalização da banca, justiça fiscal, denúncia do memorando da troika.

Este Governo tem muita pressa. Baixar salários, facilitar os despedimentos, privatizar as empresas públicas e aniquilar o Estado social – a cartilha do rolo compressor não pára, mesmo que os seus condutores se apresentem fragilizados. Mas muitos percebem que nesta mudança de regime social todos os caminhos começam a ficar estreitos. Os lamentos azedos da direita cavaquista começam a ganhar contornos de conluio golpista. Depois de Mira Amaral e da perigosa contestatária Ferreira Leite, ouvimos esta semana o conselheiro Vítor Bento no ataque às “elites” e no elogio federalista como solução da crise. Os arreios políticos estão tensos e ameaçam partir. Uma solução que substitua a paz podre da coligação no pós Orçamento de Estado pode ganhar muita força, e seduz já parte da direção do PS. A ferocidade com que Francisco Assis, José Lello e Augusto Santos Silva atacaram as moções de censura e a atuação de António Costa no 5 de Outubro são todo um retrato: “este Governo tem que cair, mas não agora”. Restando a Seguro a auto-afirmação suja da proposta de redução do número de deputados.

Se é certo que Passos Coelho já percebeu que joga toda a sua existência política neste Orçamento e que nós já sabemos que com Passos Coelho não há futuro digno, é preciso ser exigente no pensamento e compreender os sinais que nos chegam. A proposta do Orçamento de Estado ficou condicionada pela derrota do aumento da TSU nas ruas mas não abdicará do seu ADN político. A proposta anunciada de um corte de 4.000 milhões de euros na despesa pública nos próximos dois anos traduzir-se-á na destruição do Estado social. Em 2015, o Serviço Nacional de Saúde será uma sombra do que é hoje, com listas de espera intermináveis, fecho de serviços e ruturas sucessivas de estoque de medicamentos. A Escola pública estará em frangalhos e as Universidades terão repartições inteiras fechadas, somando milhares de desistências de alunos.

Em matéria de Segurança Social tudo será mais rápido. Sabemos que são já trezentos mil os desempregados sem qualquer tipo de apoio social, seis estádios abarrotados de vidas em suspenso. A história diz-nos que a única barreira que nos separa de um desastre social num cenário como este são as lógicas de ajuda intra-familiares, mas as famílias, como a economia, mudaram muito nestes últimos anos. A total separação dos mecanismos de produção não-capitalistas (agricultura de subsistência, trocas comunitárias) no que toca à maioria dos jovens trabalhadores e o encolhimento dos núcleos familiares, associado ao desmantelamento do Estado social, gera a individualização do drama do desemprego, empurrando para as empresas de trabalho temporário, os contratos a prazo, a economia paralela e para a emigração o grosso dos trabalhadores. É um movimento de alcance histórico. A classe trabalhadora, aqui como na Europa, não será igual depois da era da troika.

O brutal aumento de impostos faz parte, neste contexto, de um movimento mais lato, que vai para lá do âmbito deste Governo – embora derrubá-lo seja sempre o primeiro passo para uma alternativa. Quando tudo aponta para o efeito recessivo destas políticas e num momento em que o pagamento do serviço da dívida já ultrapassa o custo com a Saúde, desnuda-se o engodo da austeridade. A justificação da dívida é o suporte para a transformação de regime social, que entrega a parte da burguesia nacional e internacional 30% do PIB ainda intocáveis, e o garante que os trabalhadores pagam uma crise bancária sem fim à vista. A crise não é a dívida, a reprodução da crise é o pagamento da dívida como meio de manutenção da dominação de classe.

Estes sinais dizem-nos, por fim, que para se construir um Governo de esquerda que tenha a força de vencer a chantagem da dívida e se imponha como o produto de uma luta social vigorosa é preciso a clareza de uma agenda de confronto – nacionalização da banca, justiça fiscal, denúncia do memorando da troika. Nos tempos que passam, toda a coragem conta.

Nada será como antes.

Sobre o/a autor(a)

Sociólogo, dirigente do Bloco de Esquerda e ativista contra a precariedade.
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