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A direita e os ricos​

A corrida aos depósitos, peça fundamental no apocalipse marquesmendiano, saldou-se na mesmice financeira de um país hipotecado: ninguém corre ao que não tem.

O medo, o pânico, a tragédia. Ou talvez nem tanto. Ainda se lembra do imposto Mortágua?  Não é para menos. O  machado de guerra da direita horrorizada foi enterrado e esquecido. A corrida aos depósitos, peça fundamental no apocalipse marquesmendiano, saldou-se na mesmice financeira de um país hipotecado: ninguém corre ao que não tem. Novembro chegado, 1% dos proprietários afetados, as pensões aumentam e a direita perde o debate. Fim de história.

Ou o começo de uma outra. É que nisto das direitas, há sempre duas ideias que não desarmam. A primeira, mais antiga, é a que nos diz que qualquer alteração na esfera pública, pode e com certeza afetará os laços de poder na esfera privada. A morte das classes médias, lembremos Rui Ramos, vem amortalhada no ataque a um princípio inquestionável, "a propriedade é poupança". Que não haja dúvidas, a perda na política é a ameaça ao lar, à propriedade e ao status. O programa da direita só pode ser, por isso, um projeto de reparação, funcionando como antídoto à ameaça velada de uma política redistributiva. Para tal, é preciso representar a parte pelo todo, juntar o que é diferente. A segunda ideia, portanto: invocar o interesse nacional através de uma unidade generosa e multicolor: as classes médias. De súbito, qualquer família alcança os 500 mil euros (na versão desastrada de Gomes Ferreira) e a instabilidade fiscal ameaça tudo e todos, avisa Passos Coelho (que realizou 78 alterações às regras fiscais durante o anterior governo).

Mas se é por aqui que se cumpre a missão da direita, vale a pena perceber do que falamos. O recente estudo de Carlos Farinha Rodrigues já nos tinha fornecido uma leitura aprofundada dos impactos da austeridade. Os 5% mais ricos da população que em 2009 ganhavam 14,7 vezes mais que os 5% mais pobres, viram esse valor subir para 18,7 em 2014. O aumento do fosso, no que diz respeito ao rendimento, tem a sua explicação na velocidade da perda generalizada: enquanto os 10% mais ricos perderam cerca de 13% do seu rendimento, os 10% mais pobres perderam 25%. Mas falamos aqui exclusivamente de rendimentos provenientes do trabalho, das transferências sociais ou de ganhos com capital.

A semana passada, o INE publicou o Inquérito à Situação Financeira das Famílias, que analisa precisamente a situação patrimonial (imobiliário, veículos, depósitos, ações e aplicações financeiras) durante os primeiros anos da austeridade (2010 - 2013). E estes números contam-nos outra história. Durante este período, a riqueza liquida (ativos menos passivos) dos 20% mais pobres perdeu mais de dois terços do seu valor (que já era praticamente inexistente), o mesmo se passando, com menos agravo, em todos os outros escalões, menos no topo: os 10% mais ricos viram a sua riqueza patrimonial aumentar 15%.

Esta transferência realizou-se, sobretudo, por duas vias. Na propriedade imobiliária: através da diminuição na aquisição da casa própria pela maioria da população, ao mesmo tempo em que aumentou o valor mediano de outros bens imóveis (segunda e terceiras residências e outras propriedades) na posse dos 10% mais ricos (de 232,9 mil euros em 2010 para 320,1 mil em 2013). Na valorização de capital: pelo aumento mediano dos valores associados aos negócios por conta própria para os 10% mais ricos (de 152,8 mil euros em 2010 para 319,3 mil euros em 2013), isto num período de forte destruição do emprego e erosão dos salários.  

A austeridade é um regime de transferência de riqueza que acelera a acumulação no topo e ataca a propriedade das camadas intermédias, dizimando a dos mais pobres. Em Portugal, esse plano foi aplicado graças à eterna aliança entre a direita e os ricos.E não temos sinais que poderá ser diferente no futuro, até que a morte os separe.

 

Sobre o/a autor(a)

Sociólogo, dirigente do Bloco de Esquerda e ativista contra a precariedade.
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