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Brasil: faz a democracia a metade e cavas a tua sepultura

Dilma, tão diferente em tempos tão diferentes, bem pode agora reconhecer que “desgraçados dos democratas que fazem a democracia a metade, permitem o golpe que os vai derrubar”.

Saint-Just, um dos mais destacados jacobinos na Revolução Francesa, dizia com amargura, antecipando o seu próprio destino: “desgraçados dos revolucionários que fazem a revolução a metade, cavam a sua própria sepultura”. Dilma, tão diferente em tempos tão diferentes, bem pode agora reconhecer que “desgraçados dos democratas que fazem a democracia a metade, permitem o golpe que os vai derrubar”.

O golpe que avançou ontem em Brasília foi uma avalanche que entrou pelas portas dentro da fraqueza de Dilma Rousseff e do PT, mas é também revelador da natureza da direita política no Brasil. E, se é cedo para apreciar friamente todo este período longo em que o PT dominou a política brasileira, algumas tendências de fundo são muito evidentes.

A primeira é a fragilidade dos partidos de direita na transição depois da ditadura militar e sobretudo na modernização do Brasil nas duas últimas décadas. A ditadura deixou poucos personagens viáveis e o caminho foi aberto para Fernando Henrique Cardoso, opositor do regime militar e a figura mais destacada do PSDB, o partido que procurou conjugar uma imitação da social-democracia europeia com um liberalismo que cedo se identificou com a oligarquia financeira do país, e que era um trânsfuga da esquerda intelectual – por isso, começou a sua presidência a pedir indiscretamente que “esqueçam tudo o que escrevi”. Ele próprio já tinha esquecido todos os seus arroubos passados contra a desigualdade e a dependência. E Fernando Henrique era o que havia de apresentável. O resto, entre marajás e caciques, coronéis e seus jagunços, bispos de igrejas várias e militaristas avulsos, era uma fauna colorida mas sem préstimo, a não ser para grandes golpes de baú. A multidão de partidos de direita tem sido uma coligação de negócios e de carreiras pessoais, por vezes extravagantes, sempre em vantagem própria.

Desses partidos destaca-se o PMDB, o maior partido no parlamento, mas o mais insignificante nas eleições presidenciais em que sempre fracassou – o regime é presidencialista, é por via de eleição direta do presidente ou da presidente que este ou esta formam governo – e que foi portanto sendo moldado ao poder de turno, sem perspetivas de disputa vencedora, o que o PT aproveitou para uma aliança sempre espúrea.

A direita política veio então a ser uma soma de vazios, num país em que a burguesia proprietária, agroindustrial ou industrial e sobretudo financeira, é muito poderosa e bem organizada, apoiando-se em fortes órgãos de comunicação social, que aparelham intelectuais orgânicos e densos processos de legitimação, e em associações patronais que são uma voz na sociedade. Portanto, a fragilidade política da direita partidária estava desconectada da potência social do capital.

Foi nesse espaço que surgiu o PT no início da década de 1980, interpretando um amplo movimento popular, absorvendo grande parte da esquerda (nos primeiros anos, além do PCB e do PCdoB, o partido pró-soviético e o pró-chinês e depois pró-albanês, além de outras organizações de esquerda, havia ainda o PDT de Leonel Brizola, vinculado à 2ª Internacional e com influência no Rio Grande do Sul e no Rio de Janeiro) e mobilizando um sindicalismo reivindicativo e impetuoso. Esse PT mudou o mapa político brasileiro e consolidou a sua base de classe, mesmo tendo de início resultados eleitorais discretos.

Foi a vitória de Lula nas eleições presidenciais (ocupou o cargo de 2003 a 2011) depois de duas candidaturas falhadas, que virou o jogo. Mas foi então que o PT se começou a transformar. A adaptação ao poder, o deslumbramento dos cargos e das pequenas sinecuras, o jogo das alianças partidárias para criar uma base maioritária no parlamento federal e no senado em Brasília, e sobretudo a aceitação da política económica liberal e o abandono dos grandes projetos sociais, como a reforma agrária ou uma política produtiva de base nacional, tudo foi convergindo para moldar o PT ao poder que queria transformar. A corrupção de vários dirigentes e governantes foi o resultado dessa adaptação, mesmo que em alguns momentos parecesse que Dilma tinha renascido: ela prometeu um referendo para mudar as regras de um sistema de voto construído para corromper o parlamento, quando grandes manifestações em 2013 abalaram o país. Tarde de mais e pouco de menos, não aconteceu nada e continuaram as traficâncias de influência como a que foi julgada no caso Mensalão.

É certo que houve no PT quem se batesse contra a corrupção e quem fizesse da reforma do sistema político a primeira das prioridades. Mas esses foram derrotados. O PT não quis fazer a batalha política que mudasse o sistema eleitoral, que conduzisse a escolhas sociais mobilizadoras e que evitasse a aliança com a direita e a política reverente aos interesses que têm diminuído o Brasil.

Rodeado por isso de aliados que são os seus inimigos, o governo Dilma cai agora num golpe sujo, sem fundamento legal (no gráfico, uma estatística da justificação dos deputados para o voto individual pela demissão, registada às 18h50′, hora brasileira, fonte: El Pais, clique para ampliar), mas simplesmente porque os políticos que correm mais riscos judiciais se querem salvar criando o caos absoluto (note-se que em Portugal houve quem elogiasse esta turba de dirigentes e deputados acusados na justiça como salvadores da democracia). Ou seja, Dilma e o PT cultivaram a democracia a metade e abonaram os seus piores vícios, convivendo se não alimentando as piranhas, e agora percebem que cavaram a sua sepultura.

Há em tudo isto um epitáfio histórico: o poder económico, a profundidade dos abismos, o que conta mesmo, o que move as forças certas no momento certo, esse nunca confia em recém-chegados de percurso duvidoso: o PT serviu os seus interesses quando não havia ninguém na direita que conseguisse uma representação eleitoral convincente e portanto uma hegemonia confortável, mas esses cargos só podiam ser transitórios, só vigoram até voltar o pessoal tradicional que é o único aceite na mesa do poder. Foi assim na América Latina nas ditaduras militares, é agora assim em democracia: Lula não pode ser, é demasiado metalúrgico, é demasiado sindicalista, é demasiado povo, como Dilma é demasiado suspeita para as elites, mesmo quando nomeia um liberal para dirigir as Finanças ou uma representante do agronegócio para dirigir a Agricultura. E não é assim em Portugal, já agora, vista a indignação visceral (revolta “ética”, dizia-se no congresso do PSD) pelo facto de o governo resultar no parlamento de partidos que não têm bênção divina para chegar ao poder, pois “não fazem parte do arco do poder”?

A direita que conseguiu em Brasília uma primeira vitória no seu golpe quer simplesmente devolver o poder todo aos donos e ter no governo os seus e nunca mais qualquer político sem pedigree. O paradoxo é que contribui para uma crise política e constitucional que não sabe como vai acabar.

Artigo publicado em blogues.publico.pt a 18 de abril de 2016

Sobre o/a autor(a)

Professor universitário. Ativista do Bloco de Esquerda.
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