O gigantismo desta avaliação

28 de março 2008 - 0:00
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Contexto e Problemas do Decreto Regulamentar da Avaliação de Desempenho dos Professores



1) Notas introdutórias



Mas antes de iniciar a fundamentação desta minha aberta discordância, quero começar por apresentar três breves notas introdutórias.



Primeira nota. A minha crítica assenta, exclusivamente, em critérios racionais. Isto é, a partir de um conjunto de ideias e de princípios sobre o que eu considero dever ser a avaliação de desempenho de professores deduzo regras e formas que penso serem as mais correctas para levar à prática esses princípios e essas ideias. Quer isto dizer que não estarão presentes na minha crítica motivações de outra natureza: nem sindical, nem político-partidária nem qualquer outra. Todas elas são legítimas, mas não são essas as minhas motivações, neste momento.



Foi, aliás, segundo estes mesmos critérios que algumas vezes fiz, pública e formalmente, (fi-lo, por exemplo, em algumas reuniões de departamento), avaliações positivas de algumas iniciativas que, nos primeiros seis meses de governo, este ministério da educação tomou. Ainda que essas medidas revelassem já uma característica que depois se confirmou ser um traço estrutural da acção do ministério da educação: essas medidas chegavam até nós, sempre, mal preparadas, tecnicamente, mal preparadas. E essa má preparação acabou, em regra, por votá-las ao insucesso.



Segunda nota. Defendo, há já muito tempo - escrevi-o, aliás, em alguns daqueles relatórios de auto-avaliação que todos tivemos de elaborar aquando das mudanças de escalão - a avaliação rigorosa de desempenho dos professores, como mais à frente explicarei.



Terceira e última nota. As opiniões que aqui apresento são opiniões pessoais, só a mim me vinculam. Não representam, portanto, a posição da Escola Secundária de Amora, que, julgo, amanhã, em reunião do Conselho Pedagógico, tomará posição formal sobre o decreto regulamentar da avaliação de desempenho.



Apresentadas estas três notas prévias, passo, então, à análise do decreto regulamentar.



2) O contexto em que surge este decreto regulamentar



Como todos sabemos, na vida tudo tem contextos, tudo está inserido em contextos. E os contextos são, normalmente, determinantes, não só para explicar como também para definir o rumo das coisas.



O decreto regulamentar da avaliação de desempenho também tem um contexto. Tem, aliás, um vasto contexto... Esse contexto começa, como é sabido, no novo Estatuto da Carreira Docente e, por isso, sempre que estivermos a falar do decreto regulamentar estaremos também a falar, directa ou indirectamente, do ECD.



Faço esta brevíssima referência ao Estatuto apenas como enquadramento obrigatório que é necessário mencionar, não porque vá desenvolver este ponto.



Aquilo que vou chamar à contenda é um outro elemento que, do meu ponto de vista, é factor essencial para a compreensão do contexto em que o decreto regulamentar surge envolvido: estou a referir-me, em concreto, ao Concurso para Professores Titulares realizado no ano passado.



E vou investir neste assunto dois minutos do tempo destinado a esta intervenção. Faço-o por duas razões. Primeira razão: é para mim um imperativo de consciência - não poderia deixar passar esta oportunidade sem me referir ao que considero ser, para nós professores, o momento mais obscuro da história da educação em Portugal. Segunda razão: este concurso veio a ter repercussões directas no decreto que estamos, hoje, a analisar.



Este concurso deu-nos uma indicação muito clara, que veio, agora, infelizmente a ser confirmada, sobre o conceito que o ministério da educação tem do que é avaliar. Porque, de facto, o que o ministério fez no concurso para professores titulares foi uma avaliação, uma avaliação que visava, e cito o preâmbulo do decreto lei nº 200/2007, «seleccionar os docentes que, pela análise dos elementos do seu currículo profissional, mostrassem estar nas melhores condições para exercer as correspondentes funções no início do próximo ano escolar».



Portanto, o ministério da educação procedeu, segundo as suas próprias palavras, a uma avaliação do currículo para seleccionar os melhores de modo a «dotar as escolas de um corpo de docentes altamente qualificado, com mais experiência, mais formação e mais autoridade».



Como é que para um objectivo, pretensamente, tão nobre e elevado se produziram regras tão iníquas e tão desajustadas?



Deste modo, tendo sido um concurso tão mal preparado, tendo sido, de facto, um pântano de injustiças e atropelos, gerou um profundíssimo sentimento de indignação que ainda não passou e que, estou certo, não passará nunca. Quando se atinge a dignidade profissional de alguém, esse alguém, como é óbvio, não o esquece.



Assim, lançaram-se as piores sementes para que este processo de avaliação de desempenho, que agora se inicia, estivesse contaminado à nascença.



Com toda a legitimidade, aqueles que, e são muitos, se sentem injustiçados, sentem ter sido posta em causa a sua dignidade profissional, que é o valor mais importante para qualquer professor, não estão hoje motivados ou sequer disponíveis para o processo da avaliação de desempenho. Muitos destes colegas não reconhecem nem autoridade nem mérito a quem sempre esteve hierarquicamente abaixo de si e que, agora, por mero capricho de um conjunto de critérios impensados e impensáveis, os ultrapassou na carreira e vão ser seus avaliadores.



Era difícil começar pior.



Permitam-me que traga, agora, até ao nosso colóquio a opinião avalizada do coordenador-geral do Laboratório Latino-Americano de Avaliação da Qualidade da Educação da UNESCO, especialista em Métodos de Investigação e Avaliação e que foi responsável por um estudo comparado entre 50 países e 55 sistemas de ensino.



Desse estudo, ele concluiu que qualquer governo deve ter como primeira preocupação evitar a rejeição frontal do sistema de avaliação: «De outra forma», diz Murillo, «a sua aplicação torna-se difícil, ou mesmo impossível, e as suas repercussões serão negativas»1.



Perguntado sobre como é que se pode evitar essa rejeição, respondeu: «Em primeiro lugar, criando um sistema de avaliação de qualidade: útil, credível [...]. Em segundo lugar, trabalhando para criar uma cultura de avaliação, através de um modelo mais profissional e menos burocrático onde o docente perceba que a avaliação existe para o ajudar no seu trabalho. E tudo isto, estabelecendo um consenso com os professores e os sindicatos. Um sistema de avaliação só servirá se for aceite pelos docentes e por toda a comunidade educativa"2.



Quase apetece dizer que houve aqui alguém que fez ponto de honra em contrariar linha a linha tudo o que afirmou Javier Murillo.



Concluo esta referência ao contexto em que surgiu o decreto regulamentar da avaliação de desempenho dizendo que muito dificilmente seria possível engendrar um contexto tão adverso como este que estamos a viver.



Passo, agora, ao conteúdo do decreto, para abordar três problemas (entre outros) que ele encerra e que me parecem ser fundamentais.



3) Primeiro problema: o problema do gigantismo do processo e da sua consequente inoperacionalidade.



Mas de que falamos nós, exactamente, quando falamos do gigantismo do processo de avaliação de desempenho dos professores e da sua consequente inoperacionalidade? Falamos do seguinte.



Primeiro. Falamos do número de parâmetros e de indicadores de classificação, a partir dos quais é efectivada a avaliação de desempenho dos professores. Estes parâmetros e estes indicadores reunidos formam a lista de itens de classificação que, a seguir, passo a enumerar:



1. Preparação e organização das actividades lectivas;



2. Realização das actividades lectivas;



3. Relação pedagógica com os alunos;



4. Processo de avaliação das aprendizagens dos alunos;



5. Nível de assiduidade;



6. Serviço distribuído;



7. Progresso dos resultados escolares esperados para os alunos;



8. Taxas de abandono escolar;



9. Participação dos docentes na escola;



10. Apreciação do trabalho colaborativo em projectos conjuntos de melhoria da actividade didáctica e dos resultados das aprendizagens;



11. Acções de formação contínua concluídas;



12. Exercício de outros cargos ou funções de natureza pedagógica;



13. Dinamização de projectos de investigação,



14. Desenvolvimento e inovação educativa e sua correspondente avaliação;2 Idem.



15. Apreciação realizada pelos pais e encarregados de educação dos alunos.



Segundo. Falamos de gigantismo quando falamos das fichas de avaliação que desmultiplicam estes itens que acabei de enumerar em:



- 20 itens de avaliação que o coordenador deverá analisar relativamente a cada um dos professores do seu departamento. A estes 20 itens somam-se outros 18 itens que o presidente do conselho executivo deverá avaliar relativamente a cada um dos professores da escola. O que perfaz um total de 38 itens a partir dos quais será realizada a avaliação de cada um dos professores;



- A estes 38 itens adicionam-se 14 itens constantes da ficha de autoavaliação que cada professor terá de desenvolver.



Convém lembrar que nesta ficha de auto-avaliação cada professor tem de apresentar os resultados do progresso de cada um dos seus alunos nos anos lectivos em avaliação (alínea a) do nº 5 do art.º 16º). A uma média benigna de 5 turmas por professor e 25 alunos por turma, cada professor, de dois em dois anos, tem de apresentar os resultados individualizados do progresso de 250 alunos.



Nessa mesma ficha de auto-avaliação cada professor tem de apresentar:



- a evolução dos resultados dos seus alunos face à evolução média dos resultados dos alunos daquele ano de escolaridade ou daquela disciplina;



- a evolução dos resultados dos seus alunos face à evolução média dos resultados dos mesmos alunos no conjunto das outras disciplinas da turma;



- duas coisas, que não estão no decreto regulamentar, mas estão nas fichas, o progresso dos resultados escolares dos seus alunos na disciplina relativamente aos resultados atingidos no ano lectivo anterior; e o progresso das aprendizagens dos alunos relativamente à avaliação diagnóstica realizada no início do ano.



Finalmente, nos casos em que possa ser aplicado, deve ainda o professor apresentar os resultados dos seus alunos nas provas de avaliação externa, tendo presente a diferença entre as classificações internas e externas.



Terceiro. Falamos de gigantismo quando falamos das entrevistas que os avaliadores (coordenadores de departamento e presidente do conselho executivo) terão de efectuar a cada um dos professores no final de cada módulo de dois anos, na fase conclusiva do processo de avaliação. Isto é, na nossa escola, por exemplo, em números redondos o número de entrevistas a realizar andará perto das 180...



Quarto. Falamos de gigantismo quando falamos do seguinte: como o decreto regulamentar estipula que a avaliação recai sobre períodos de dois anos escolares e ao mesmo tempo estipula que os processos de preenchimento das fichas de avaliação e das fichas de auto-avaliação e as reuniões entre avaliadores e avaliados e os eventuais recursos decorrerão até ao termo do ano civil em que se completar o módulo de dois anos (art.º 11º), isto é, até ao fim do mês de Dezembro desse ano, quer dizer que o 1º período do ano escolar seguinte ao do termo do módulo em avaliação será ocupado com essas tarefas.



Se a avaliação de desempenho fosse realizada uma única vez na carreira do professor, esta calendarização não levantaria problemas. Mas a avaliação de desempenho não é feita uma só vez, a avaliação é um processo contínuo. Quando termina um módulo de dois anos em Agosto, recomeça novo módulo de avaliação em Setembro. Isto quer dizer, na prática, que de dois em dois anos, no período que vai de Setembro a Dezembro, estarão a decorrer, em simultâneo, dois processos:



- um processo que é constituído pelo preenchimento das fichas de avaliação e de auto-avaliação e pela realização de reuniões entre avaliadores e avaliados e pelas reuniões da Comissão Coordenadora de avaliação, etc. etc.;



- e um segundo processo que dará início a novo módulo de avaliação, com a consequente formulação de objectivos individuais que todos os professores terão de fazer, seguida de reuniões individuais com os coordenadores para negociação e aprovação desses mesmos objectivos.



Tudo isto no mesmo espaço de tempo. Quer dizer que neste espaço de tempo, nesta escola, por exemplo, não andaremos muito longe de 360 reuniões só para este efeito.



Assim, para além de ficarmos a saber que de dois em dois anos vamos ter de passar a consoada na escola, ficamos a imaginar a enorme confusão que tudo isto vai gerar.



Uma nota de rodapé para concluir este ponto relativo ao gigantismo.



A cumprir-se tudo isto que está estipulado no decreto regulamentar é mais do que provável que os professores irão começar um novo módulo de avaliação, irão iniciar a formulação de novos objectivos individuais sem saberem ainda os resultados da avaliação do módulo anterior.



4)) Segundo problema: o problema de uma Avaliação de Desempenho centrada exclusivamente na avaliação interna e a ausência de formação neste domínio.



A avaliação de desempenho que o ministério gizou assenta exclusivamente num processo de avaliação interna, isto é, uma avaliação feita unicamente pelos pares. Com a excepção do recurso aos resultados obtidos pelos alunos nos exames nacionais para efeitos de avaliação dos professores, assunto que abordarei mais à frente, não existe qualquer outro elemento externo à escola que intervenha no processo de avaliação (não incluo, aqui, naturalmente, a avaliação que é feita aos avaliadores pela inspecção de ensino).



Penso ter sido outra má opção. Penso que o modelo misto, aquele que combina avaliação interna com avaliação externa é o mais adequado. Em particular no que diz respeito à observação de aulas, a avaliação externa parece-me ser a via mais correcta. Tentarei, agora, justificar esta opinião.



A literatura científica sobre esta matéria não é unânime, mas predomina claramente a opinião que defende a combinação dos dois modelos. As potencialidades negativas de uma avaliação exclusivamente interna são muito superiores às positivas. Seleccionei seis objecções de fundo, de um conjunto mais vasto, que a investigadora Nancy Chism, da Universidade de Indiana, E.U.A., apresentou, após estudos e observações de campo:



«1.ª possibilidade de enviezamento do processo, visto a imparcialidade dos pares ser dificultada por rivalidades;



2.ª a posição sensível em que os pares ficam colocados, quando o que está em jogo é a progressão na carreira e a progressão de colegas para um escalão superior;



3.ª os constrangimentos de tempo, na medida em que uso proficiente de tal técnica é demorado;



4.ª a inexistência de padrões de desempenho para guiar a avaliação dos professores;



5.ª os problemas da validade e da fiabilidade, dado ser difícil avaliar se os pares estão de facto a observar aquilo que se pretende que observem e se estão a fazê-lo com consistência e precisão;



6.ª a indefinição sobre quem deve desempenhar o papel de par; e no caso das disciplinas mais especializadas, ser difícil encontrar colegas que possam fornecer uma opinião abalizada sobre a exactidão e a actualização dos conteúdos ensinados»3.



Sobre esta questão, um outro investigador, Myron Lieberman, diz com toda a clareza: «os dados revelaram que a apreciação pelos pares não provocou nenhuma diferença significativa na qualidade do corpo docente»4.



Mas vejamos, agora, como esta avaliação é feita em alguns outros países.



Em França, explica Gérard Figari, responsável pelo laboratório de ciências da educação da Universidade de Grenoble: «A avaliação é feita externamente por inspectores, que têm funções diferentes dos inspectores portugueses. Cabe-lhes fazer uma avaliação pedagógica, em que avaliam individualmente os professores e visitam-nos nas suas aulas. Paralelamente, são avaliados pelos responsáveis do estabelecimento de ensino no âmbito de um plano administrativo e de organização do trabalho interno da escola». Faz notar ainda que «tem havido uma evolução nas funções dos inspectores nos últimos anos que se consideram não como controladores mas como acompanhantes do trabalho dos professores e isso ajuda»5.



«Na Irlanda», diz Anne O'Gara, presidente do Marino Institute of Education, «existem diferentes níveis de avaliação. Em alguns casos, a avaliação é feita pela própria escola mas também existe uma avaliação individual dos professores, num processo que começa na formação para a profissão e que continua no exercício da mesma, quando as aulas passam a ser acompanhadas pelos inspectores de educação»6.



Na Áustria, Gunter Schmid, responsável do Sir-Karl-Popper-Schule, explica que a avaliação é feita por inspectores e por headmasters, que estão sempre presentes, acompanhando o dia-a-dia dos professores7.



Vejamos ainda o que diz Javier Murillo, a partir das conclusões que retirou do estudo comparado de 50 países, que há pouco mencionei:



«A avaliação externa e a avaliação interna são ambas necessárias e complementares. A avaliação interna deve ser mais uma parte do trabalho dos professores como profissionais sensatos que procuram melhorar a sua prática. Por outro lado, a avaliação externa introduz elementos de objectividade e contribui para uma melhor avaliação. A avaliação com repercussões nas condições económicas ou laborais dos professores deve ser necessariamente externa»8.



Estas são algumas das objecções que deveriam, na minha opinião, ter levantado fortes reservas à adopção do modelo centrado exclusivamente na avaliação interna.



Mas se descermos à realidade concreta do sistema educativo português, onde não existe nenhuma cultura que vá neste sentido, ainda parece ser mais evidente que essa opção não deveria ter sido tomada.



Javier Murillo diz a este respeito uma coisa que é óbvia: «cada país deve criar o seu próprio modelo em função das características do seu sistema educativo»9.



Ora o que temos nós na história do nosso sistema educativo? Até ao final da primeira república não existiu qualquer sistema de avaliação de desempenho dos professores. No Estado Novo a avaliação que se implementou foi centrada na Inspecção Geral do Ensino e na figura do reitor de cada escola. Com o 25 de Abril a avaliação dos professores foi interrompida e, posteriormente, reiniciada, mas centrada, quase exclusivamente, na auto-avaliação, complementada, apenas, com os créditos das acções de formação contínua.



Agora, de repente, sem preparação, sem consensualização, avança-se a toda a pressa para este modelo sustentado exclusivamente na avaliação entre pares. Sem qualquer tradição neste domínio e sem qualquer formação que sustente o novo processo, que se podia esperar? O que está a acontecer. Se juntarmos a isto o que há pouco referimos relativamente ao contexto, então percebemos, com facilidade, a sucessão de reacções a este sistema de avaliação que todos os dias vêm a público.



Simultaneamente, também não se compreende que não tenha havido a preocupação de elaborar um programa de formação que criasse condições para que o processo de avaliação de desempenho dos professores pudesse iniciar-se e assentar em bases minimamente preparadas.



Não partilho nada da ideia que defende que quem sabe avaliar alunos também sabe avaliar professores. Aliás, toda a literatura científica que pude consultar corrobora essa objectiva diferença e corrobora a necessidade de preparação e de formação neste domínio. Cito o que a este respeito escreveu uma investigadora portuguesa, Ana Paula Curado, na sua tese de doutoramento: é necessário «organizar formação sobre os mais importantes tópicos da avaliação de professores, tais como: reflexão sobre as práticas; observação e discussão de aulas; finalidades e métodos de avaliação de professores; apreciação das práticas por pares. Assim, quer professores quer avaliadores teriam acesso a instrumentos que lhes permitissem compreender as expectativas uns dos outros»10.



A este respeito, Javier Murillo afirma: «Um avaliador deve ter, em primeiro lugar, um bom conhecimento do trabalho do professor em aula bem como possuir uma panorâmica do sistema educativo no seu conjunto. Deve também ter conhecimentos e experiência em avaliação: aplicação de instrumentos, elaboração de relatórios informativos, etc.»11.



Mas nada disto foi acautelado. Nada disto foi minimamente preparado. Há uma pressa imensa de mudar e não interessa como se muda nem interessa saber para onde vamos com essa mudança. (Faz lembrar uma conhecida caricatura dos americanos que diz que os americanos andam sempre apressados, mesmo quando não sabem para onde vão).



«Mudar» é um verbo que adquiriu com este governo um estatuto axiológico e ontológico que, acredito, nenhum filósofo, certamente, conseguiu antever. «Mudar» passou a ter valor em si mesmo. Não interessa o como nem o para quê. O «mudar» basta-se a si mesmo.



Temos ouvido dizer, muitas vezes, que quem contesta esta mudança fá-lo porque pretendia que tudo ficasse na mesma. É um argumento defensivo, na realidade nem sequer chega a ser um verdadeiro argumento, porque não nos diz nada sobre o mérito desta mudança. Faz uma acusação, faz um juízo de intenção, foge à questão e não discute o problema.



5) Terceiro problema: O problema de considerar a indexação da avaliação de desempenho às classificações dos alunos como um parâmetro da avaliação dos professores.



Ligar a avaliação de desempenho às classificações dos alunos é, sem dúvida, uma questão de fundo e polémica e que, por isso mesmo, merece ser analisada e discutida com algum detalhe.



Será curioso começarmos por recordar que a ideia de se estabelecer esta ligação entre as classificações dos alunos e avaliação dos professores é de origem anglo-saxónica, como, aliás, acontece normalmente com este tipo de ideias.



Surgiu, pela primeira vez, no final do século XIX na Inglaterra e foi aplicada segundo o lema «pagamento segundo os resultados». Os professores teriam os seus salários aumentados se os alunos atingissem ou superassem os objectivos definidos. Pouco tempo depois, em 1902, o Parlamento inglês cancelou esta política, porque considerou que estava a corromper o sistema educativo...



Naturalmente que faço esta referência como curiosidade histórica, mas também porque ela toca num dos aspectos essenciais do problema.



E o problema, no fundo, acaba por ser não um, mas três:



1. O problema de saber se os resultados dos alunos espelham sempre de forma directa e objectiva a qualidade dos professores;



2. O problema de saber se há fiabilidade na medição dessa eventual relação;



3. O problema de saber se, para além dos dois pontos anteriores, a existência de fortes possibilidades de perversão do processo não o põem, só por si, em causa.



A minha opinião é a seguinte.



A qualidade profissional de um professor não é necessariamente proporcional às classificações que os seus alunos obtêm. Não há equação matemática que traduza esta relação, não estamos perante uma relação mecanicista.



Todos sabemos que o processo de ensino e de aprendizagem é um processo dialéctico, que as duas partes se inter-influenciam, ainda que não de modo idêntico, em que uma das partes, o aluno neste caso, pode ser particularmente influenciada pela acção do professor, mas não é determinada pela acção do professor. A educação não é uma ciência exacta, para decepção de muitos que gostariam que fosse. Mas não é.



Significa isto que estamos no reino da impossibilidade avaliativa? Não estamos, de todo, mas avaliar uma realidade não é sinónimo de medir essa realidade.



Temos ouvido com alguma frequência o seguinte argumento por parte dos nossos governantes - primeiro-ministro, ministra da educação e do secretário de estado: a progressão dos resultados dos alunos é apenas um factor entre outros na avaliação dos professores. É verdade, mas este é mais um argumento defensivo,que também nada diz sobre o mérito deste elemento de avaliação em si mesmo, que é isso que nos interessa julgar.



A questão, na minha opinião, é esta: Existe ou não existe uma relação directa, objectiva e necessária entre as classificações dos alunos e a qualidade do professor? Porque é essa relação, de facto, que é estabelecida pelo decreto regulamentar nos itens avaliativos da progressão dos resultados dos alunos.



Na minha opinião, não existe essa relação directa, objectiva e necessária. E isto, independentemente do peso que estes itens tenham na avaliação global do professor. Se é um item que avalia mal, não deve lá estar, tenha muito ou pouco peso.



Aliás, a este propósito pode-se colocar uma questão: se esse item é, de facto,fiável por que razão dizem que lhe dão tão pouco peso? Se de facto ele é fiável não deveria ter um peso significativo, provavelmente, até, o mais significativo?



A opção de se incluir os resultados dos alunos na avaliação dos professores parte do pressuposto de que existe essa relação directa, objectiva e necessária entre esses resultados e a qualidade do professor, o que ainda não foi provado.



E penso que não se deve argumentar com inadequadas analogias em que se defende que o profissional eficiente é aquele que estatisticamente produz melhores resultados. Isso pode funcionar em relação à produção de parafusos, mas não necessariamente em relação à educação de alunos.



Desçamos à realidade nossa conhecida e centremo-nos, por exemplo, numa situação comum pela qual já todos nós passámos e passaremos. Um professor tem numa turma um conjunto de alunos cujos resultados das aprendizagem foram negativos no 1º período, que se traduziram, por exemplo, numa classificação de 8 valores. O esforço conjunto de professor e alunos permitiu, neste caso, que chegados ao final do 3º período estes alunos tivessem alcançado os níveis de aprendizagem mínimos o que lhes possibilitou obterem a classificação final de 10 valores.



Estatisticamente estes alunos tiveram um progresso de 2 valores.



Na turma ao lado temos uma situação em que igual número de alunos parte não do 8, mas do 11, e terminam o ano com 13 valores, para os quais não foi necessário particular empenho por parte do professor.



Estatisticamente também houve um progresso de 2 valores.



Estatisticamente, ambos os progressos valem o mesmo.



Mas na realidade, valem o mesmo? Este progresso numérico traduz com fidelidade o trabalho dos dois professores? Não traduz, pelo contrário, falseia a realidade.



E situações destas, isto é, situações cuja estatística não espelha a realidade poderíamos nomear às dezenas, sem termos de recorrer, necessariamente, à célebre história dos frangos...



Fiz um esforço sério para encontrar fundamentação substantiva que me convencesse do contrário. Digo, sinceramente, que se a tivesse encontrado, até teria ficado satisfeito, porque isso facilitaria a vida a todos nós, porque teríamos elementos fiáveis e objectivos em que podíamos acreditar. Mas não encontrei.



Contudo, estou, como é óbvio, absolutamente receptivo a que o contrário seja demonstrado.



Do ponto de vista meramente teórico há uma possibilidade que poderia ser mais tolerável, e que é esta:



- comparar exclusivamente a média dos resultados do 1º período com a média dos resultados do 3º período de uma turma.



Mas, na realidade, mesmo este modo de tentar aferir o progresso das aprendizagens não é aconselhável porque a adulteração da verdade dos resultados é sempre uma fortíssima possibilidade.



Sejamos claros: criam-se ou não se criam condições para que haja a tentação de manipular resultados se um professor verificar que a média dos resultados do 3º período é inferior à do 1º período e isso prejudicar a sua carreira?



Ora, se nós sabemos da falta de fiabilidade da medição desta relação entre resultados dos alunos e qualidade do professor, porque se está a introduzir algo que para além de ser pouco fiável pode ser perverso? Em nome de quê? Das aparências de rigor? Do mito do professor eficiente da América dos anos 30? Ou porque é assim que se faz na Universidade de Harvard...?



Mas o decreto regulamentar nem sequer esta hipótese que acabei de colocar e que seria a menos maligna ele prevê.



O que o decreto regulamentar exige é que se proceda à comparação entre os resultados escolares dos alunos na disciplina face ao ano lectivo anterior. Leio isto e, confesso, fico perplexo.



Considera-se correcto e fiável proceder a essa comparação? É correcto e fiável comparar, por exemplo, os resultados médios de uma turma na disciplina X com os resultados médios de outras turmas e com outros professores do ano lectivo anterior? Das quatro variáveis aqui presentes: alunos, ano, professor e disciplina, metade dessas variáveis alterou-se. Apenas se mantém o ano e a disciplina. Os principais protagonistas, que são os alunos e os professores, podem ser completamente diferentes. Então, de facto, estamos a comparar o quê e para quê?



O decreto regulamentar exige também que se avalie a evolução dos resultados escolares dos alunos relativamente à evolução média dos resultados de todos os alunos da escola naquela disciplina no mesmo ano de escolaridade!!



As teorias pedagógicas que nos dizem que cada aluno é um aluno, que cada turma é uma turma, que o ensino deve atender às especificidades de cada criança e que, idealmente, o ensino deveria ser individualizado, que nos dizem que as classificações entre alunos não podem ser comparadas (e legalmente não podem ser), estas teorias que permanentemente estão a ser convocadas para os mais diversos fins, agora, para esta comparação dos resultados de diferentes turmas, de diferentes professores já não são convocadas? Que é feito delas? De repente foram esquecidas? Afinal a virtude é encontrada através de uma média aritmética?



Que vai acontecer a um professor que tenha a sorte de ter uma ou duas turmas problemáticas (e estou a utilizar aqui o termo problemático de forma eufemística) cuja média de evolução dos resultados seja manifestamente inferior à média da evolução dos resultados de toda a escola? À luz de que princípio fundador se pretende fazer estas comparações e daí retirar julgamentos sobre a qualidade profissional de um professor e penalizá-lo na carreira?



O decreto regulamentar determina, igualmente, que se avalie a evolução dos resultados escolares dos alunos relativamente à evolução média dos mesmos alunos no conjunto das outras disciplinas da turma. A natureza da objecção mantém-se e alarga-se. Em disciplinas diferentes, que remetem para saberes e competências diferentes, com professores diferentes, a evolução média dos seus resultados deve ser comparada porquê?



Finalmente, o decreto regulamentar estipula que também deve ser considerada na avaliação de desempenho do professor a diferença entre as classificações das provas de avaliação externa e as classificações internas.



Para além de outras objecções, há, a este respeito, uma objecção já repetidamente apresentada, mas nunca respondida: este item só pode ser aplicado a alguns professores. Num sistema de avaliação que quer ser universal e objectivo não pode haver professores avaliados nuns parâmetros e outros não.



Comentário final sobre este problema.



Um forte argumento contra este ponto do decreto regulamentar é, como já referi, o que afirma a existência de uma objectiva possibilidade de manipulação de resultados quando um professor sentir que pode ser penalizado na carreira pelas menos boas classificações dos seus alunos. A resposta que tenho ouvido é a de que falar de tal possibilidade é lançar uma desconfiança generalizada sobre os professores.



Não vou socorrer-me da célebre afirmação do Óscar Wilde que dizia que resistia a tudo, excepto a uma boa tentação...



Mas é curioso fazer notar como a argumentação é pouco vertebrada: ora se diz que os professores são contra este modelo de avaliação porque, de facto, o que eles querem é não ser avaliados, envolvendo, aqui, um juízo muito negativo sobre a seriedade das suas intenções, ora se diz que os professores são as pessoas mais sérias do mundo e que, portanto, a manipulação de resultados é impensável.



Não me parece ser razoável argumentar de modo tão auto-contraditório.



Mas a realidade é que não estamos, de facto, perante algo de impensável.



E todos sabemos isso.



Vou concluir a minha comunicação, enunciando algumas perplexidades de modo muito sucinto:



1. Porque razão não se testa primeiro este modelo de avaliação para vermos no terreno as suas eventuais virtudes e os seus eventuais defeitos? Estamos a falar de algo que tem consequências nas carreiras de 150 mil profissionais. Porque não se faz isso? Porque razão não se avança com.... tranquilidade e com passos curtos, mas firmes, em lugar desta correria desnorteada?



2. Porque razão não é lançado um plano de formação no domínio da avaliação que prepare, capacite e dê segurança a quem vai exercer as funções de avaliador?



3. Como é que se pretende avançar com o processo sem que o órgão (Conselho Científico para a Avaliação de Professores) que «tem por missão implantar e assegurar o acompanhamento e a monitorização do regime de avaliação»12 esteja a funcionar? Ou o órgão é necessário ou não é necessário? Se não é necessário extinga-se.



4. Há ou não há a noção de que grande parte dos Projectos Educativos de Escola não estão minimamente adaptados às exigências que o decreto regulamentar impõe?



5. Porquê a persistência no gigantismo de quatro departamentos? Qual a fundamentação científica e pedagógica dessa organização? Que operacionalidade se espera que daí resulte? Que vantagens traz em relação à organização anterior? Muda-se e não se explica o porquê e o para quê da mudança?



Perguntas mais comezinhas:



- Como é que se mede a qualidade da participação do docente na vida da escola?



- Como é que se mede a qualidade da participação do docente nas estruturas de orientação educativa?



- Como é que se mede a qualidade da participação do docente no desenvolvimento das relações entre a escola e a comunidade?



Não nos respondam com a autonomia.



Então, o ministério da educação cria os problemas e nós, escolas, é que, «autonomamente», os vamos resolver?



Última pergunta:



Alguém nos sabe explicar o porquê de tudo isto?



Mário Carneiro (Professor de Filosofia, 26 anos de serviço)



Amora, 27 de Fevereiro de 2008



Notas:



1 Portal EDUCARE.PT (30/5/2007).



3 Chism, Nancy, Peer Review of Teaching: A Sourcebook, MA: Anker Publishing Company, Bolton, in, Curado, Ana Paula, Política de Avaliação de Professores em Portugal: Um Estudo de Implementação, Fundação Calouste Gulbenkian, Fundação para a Ciência e Tecnologia, Lisboa, 2002, p. 76,



4 Liberman, Myron, Teachers Evaluating Teachers: Peer Review and the New Unionism, N. J.: Transaction Publishers, New Brunswick, in, Curado, Ana Paula, Política de Avaliação de Professores em Portugal: Um Estudo de Implementação, Fundação Calouste Gulbenkian, Fundação para a Ciência e Tecnologia, Lisboa, 2002, p. 77,



5 Portal EDUCARE.PT (21/5/2007).



6 Idem.



7 Cf. portal EDUCARE.PT (21/5/2007)



8 Portal EDUCARE.PT (30/5/2007).



9 Idem.



10 Curado, Ana Paula, Política de Avaliação de Professores em Portugal: Um Estudo de Implementação, Fundação Calouste Gulbenkian, Fundação para a Ciência e Tecnologia, Lisboa, 2002, p. 299.



11 Portal EDUCARE.PT (30/5/2007).



12 Decreto Regulamentar nº 4/2008, de 5 de Fevereiro.

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