NFT:Como reduzir a Arte ao talão de compra

O tema dos NFT irrompeu pelo discurso mediático e, pelo meio dos anglicismos ciber-místicos (blockchains, tokens, Ethereum, drops, Tezos, gas fees), é um grande desafio conseguir compreender o que está em jogo. Neste texto começamos por uma articulação não técnica sobre o que são e não são os NFT, para depois articular o hype à sua volta e a sua eventual utilidade para as artes e a sociedade. Artigo de Ricardo Lafuente.

11 de dezembro 2021 - 17:28
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Imagem de São Francisco Xavier, séc. XVII. Propriedade da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, que lançou uma série de 125000 NFTs com representações digitais da peça por 200€ cada.

O que são?

Para começar, precisamos de expor o conceito de blockchain. Uma blockchain é um registo de transações, uma prova fiel de que uma pessoa transferiu algo para outra, e constitui a base do complexo sistema das criptomoedas. As blockchains têm a característica de serem distribuídas (ou seja, não centralizadas numa entidade) e imutáveis (uma vez confirmada uma transação, o seu registo é permanente). Um engenhoso sistema de incentivos faz com que muitas pessoas se juntem ao esforço computacional de manter no ar uma blockchain, recebendo criptomoeda em troca de colocar computadores a executar os cálculos necessários. Assim se assegura a descentralização do sistema de transações, e é no conceito de blockchain que assenta todo o conjunto de criptomoedas – Bitcoin, Ethereum e tantas outras.

Nos últimos dois anos, começou-se a ouvir falar dos Non-fungible tokens (NFT), que entretanto alcançaram o interesse dos media, anunciando-se vendas milionárias de NFT nas casas mais conceituadas de leilões de arte. São nomes sonantes como Banksy, Grimes ou Quentin Tarantino a colher valores que levantam qualquer sobrancelha: o recorde de venda de um NFT pertence ao artista digital Beeple, com uma aquisição de 69 milhões de dólares. Analistas apontam os NFT como uma promissora forma de financiamento das artes, e a adesão de entidades como a Liga Francesa de Futebol ou, por cá, a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, é reveladora da popularidade dos NFT.

E o que são? Um NFT é, simplificando, um certificado de autenticidade de uma transação relativa a um ficheiro digital. Vamos por partes: quando se fala da venda de um “NFT de uma obra de Banksy”, não é uma verdadeira venda. Não existe transferência de propriedade, e a tal obra de Banksy permanecerá na posse do vendedor.

O que o NFT assegura é o registo da transação: é possível comprovar que uma pessoa comprou um certo NFT a outra, pois os NFT são registos numa blockchain. Assim, existe de facto uma aquisição por parte do comprador: após a transação (feita em criptomoeda), passa a existir o registo de que pagou X por um NFT específico. Um NFT é, resumindo, um talão que regista a aquisição de si próprio.

O NFT também regista consigo uma ligação permanente a um ficheiro digital online, frequentemente uma reprodução digital da obra física a que diz respeito (fotografia, vídeos, modelos 3D) ou, no caso da arte digital, a própria peça em JPEG, GIF ou outro formato. A Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, por exemplo, colocou recentemente à venda NFTs das suas relíquias. Quem comprar o NFT de uma, obtém um link para modelos 3D e fotografias da peça, que permanece segura nas instalações (e propriedade) da SCML. Neste momento, estão à venda 125.000 NFT da imagem de S. Francisco Xavier, por €200 cada. É muitíssimo comum encontrar obras com edições de múltiplos NFT, mas ao contrário das edições limitadas físicas (como as serigrafias), quem compra NFT apenas leva para casa o talão de compra e uma fotografia do original.

Imagem de São Francisco Xavier, séc. XVII. Propriedade da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, que lançou uma série de 125000 NFTs com representações digitais da peça por 200€ cada.
Imagem de São Francisco Xavier, séc. XVII. Propriedade da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, que lançou uma série de 125000 NFTs com representações digitais da peça por 200€ cada.

No final, é justo perguntar pelo que se está realmente a pagar, se não ganhamos acesso nem direito de propriedade da obra cujo NFT adquirimos, e também nem temos a exclusividade do próprio NFT já que boa parte são lançados em múltiplas edições, o que é que sobra? As respostas dos entusiastas dos NFT tornam-se aí vagas: obtêm-se “experiências”, “satisfação de possuir um pedaço da história”, “valor emocional”.

Há que manter o hype

Os NFT constituem uma encenação da posse (a obra original não muda de mãos) e, sobretudo, uma encenação da escassez. É preciso conferir um ar de exclusividade e propriedade a algo que não dá nenhuma das duas, por isso como se pôde popularizar os NFT? Graças a muito, muito hype.

O hype dos NFT pode ser encontrado em notícias eufóricas sobre a última celebridade a aderir ao movimento, e colunas de opinião por parte de quem tem interesse em suscitar entusiasmo à volta do assunto. O hype também se manifesta na forma de grupos Telegram, servidores Discord, canais YouTube e TikTok ou contas Twitter onde se debitam narrativas reluzentes e cafeinadas sobre as fantásticas oportunidades de investimento; um relatório da Chainalysis explica-nos como os insiders vão atraindo pessoas para investir e obter descontos aderindo a grupos restritos, sobrando migalhas para quem não está “dentro”. No final os novos convertidos tratam de por sua vez alargar o hype, o que é bem necessário quando cerca de 90% das coleções NFT perdem rapidamente todo o seu valor, segundo o relatório acima citado. Mas quando um NFT excecionalmente “resulta” e sobe de valor, ou quando uma nova personalidade de destaque adere ao hype, então a imprensa trata do resto e o hype levanta voo.

Sem ligação à propriedade ou exclusividade, aos NFT resta o papel de bem especulativo, cujo valor não está associado a nada de tangível, e é definido pelo número de pessoas que adere, atraído por celebridades incontornáveis ou grupos e comunidades online com apelos quase irresistíveis. Os retornos do investimento são sempre apelos à emoção: como não há obra para vender, apenas o talão, promete-se comunidade e valor emocional. Seria ilegal usar um canal de Youtube ou conta de Twitter para criar hype à volta das ações de determinada empresa para que subam de valor (o esquema de pump and dump), mas é justamente isso que está a acontecer no caso dos NFT, com venture capitalists (encabeçados pelo seu paladino, Elon Musk) a investir imenso e influencers a promover ativamente NFTs nos quais têm interesse direto – só que, sem regulamentação ou fiscalização ativa, a polícia não vem (ainda) importunar a festa.

E tal como no caso das criptomoedas, os que perderam dinheiro neste casino não irão tweetar diariamente sobre o assunto, razão pela qual apenas permanece o hype positivo que nos dá uma noção erradamente solarenga do valor dos investimentos nos NFTs (e criptomoeda em geral). E esse hype positivo e omnipresente é muito eficaz a suscitar o FOMO (fear of missing out, o medo de ficar de fora): quantos de nós não pensaram, uma vez que seja, no que teria acontecido se tivéssemos comprado uma bitcoin ou duas quando ainda eram baratinhas?

Mas não deixemos todos os anglicismos fazer-nos pensar que tudo isto se passa lá fora. Uma ótima demonstração deste hype surgiu recentemente na forma de coluna do Público, que começa por anunciar que “quem não envolve NFT no seu negócio está fora de jogo”. Na continuação do artigo, após citações-relâmpago de celebridades mediáticas, encontramos o inevitável contorcionismo para tentar vender os NFT como mais do que são: “comprar um NFT de uma peça de arte é o mesmo do que comprar uma imagem ou um 3D de um artista? (…) Sim”, mas tal não é verdade. O recurso à confusão, à profusão de termos técnicos intransponíveis, tem sido uma característica presente no hype NFT; a compreensão da complexidade técnica e social do tema é tremendamente dificultada quando há tanta areia a ser atirada para os olhos. Também os próprios media acabam por reproduzir os exageros e representações enganosas como facto: numa notícia recente sobre o tema, lemos que as obras "vivem na blockchain" e que um NFT "garante que alguém é dono de uma peça".

O financiamento das artes

Para além do meio mediático e das celebridades, os NFT têm sido um tema particularmente presente no meio artístico. Muitos artistas, sobretudo os dedicados ao meio digital, têm acorrido aos NFT como forma de financiar o seu trabalho. Importa recordar que a arte digital enfrenta, desde a sua génese, um dilema na forma de se comercializar, sendo que os conteúdos digitais não são bens escassos: a não ser que artificialmente limitados, podem ser livremente copiados e, assim, fica em causa a exclusividade da posse de uma obra de arte.

Existe um pequeno número de artistas a enriquecer com NFT, mas tal como o mercado da arte “real” (e longe das promessas democratizadoras dos NFT e das criptomoedas), trata-se de uma muito pequena minoria movida a hype, gerindo de forma profissional a sua comunicação, o seu hype e os seus seguidores. A maioria não chega a recuperar o investimento feito para entrar no meio: para tal, é preciso adquirir criptomoeda investindo dinheiro real, e ficar sujeito a enormes taxas de transação, que pode chegar aos 10€ por cada uma, o que inclui vender, trocar ou comprar NFT (o valor das taxas de transação é quase aleatório, baseado no “tráfego da rede”). Esses valores acumulam-se rapidamente e vão parar aos intermediários e operadores das blockchains. Muitos artistas reconverteram a sua presença online para veicular o hype NFT, com a esperança de recuperar o dinheiro investido na aposta. Valida-se o sucesso de um artista NFT na medida que consiga chegar à prometida criptofortuna, e também no nosso país há quem tente.

Em junho de 2021, os artistas Conan Osiris, Holly, St. James Park e Pedro MKK lançaram um NFT no valor de 1 milhão de euros. A descrição da obra é parca na fundamentação do valor da peça: sabemos apenas que os primeiros três artistas “mergulham na mente do fotógrafo Pedro MKK e criam esta peça única de arte digital”, uma música acompanhada de um sofisticado videoclip. No momento de publicação deste texto, quase meio ano depois do seu lançamento, o NFT ainda não encontrou comprador disposto a pagar o valor que, entretanto, já ascendeu a quase 2 milhões de euros não por mérito dos artistas, mas devido às volumosas flutuações da criptomoeda usada para transações de NFT (Ethereum). Para termos uma noção da magnitude do valor: entre os artistas contemporâneos portugueses com sucesso no circuito comercial, só Paula Rego ultrapassou a barreira do milhão. Mesmo as obras de Vieira da Silva ou Joana Vasconcelos não alcançam esse limiar, e neste caso estamos a falar de aquisições reais e físicas da obra, ao contrário do que acontece com os NFT.

Imagem retirada do vídeo de "Cobras" de Pedro MKK com Conan Osiris, Holly e St. James Park, cujo NFT se encontra à venda por cerca de 2 milhões de euros
Imagem retirada do vídeo de "Cobras" de Pedro MKK com Conan Osiris, Holly e St. James Park, cujo NFT se encontra à venda por cerca de 2 milhões de euros

Um episódio que arregalou muitos olhos no mundo da arte foi a venda recorde do NFT da obra de Beeple, um artista digital americano que chegou aos 69 milhões de dólares pelo NFT da sua obra “Everydays” (um conjunto de 5.000 ilustrações digitais), colocada em leilão pela Christie’s. O feito chegou aos jornais de todo o mundo como mais um passo na inevitabilidade dos NFT como veículos para uma nova era da arte e do seu potencial comercial. Os compradores são cripto-investidores e não colecionadores de arte tradicionais, e o hype gerado pela notícia acabaria por aumentar o valor especulativo dos NFT de Beeple, ajudando os compradores a recuperar o investimento. O próprio Beeple tem uma participação de 2% na sociedade dos compradores.

Em boa verdade, não seria cínico apontar que estas contradições grotescas estão igualmente presentes no mercado da arte como o conhecemos. A postura provocatória e grandiosa que assistimos no episódio Beeple traz reminiscências do artista Damien Hirst, incluindo nas práticas questionáveis de fazer parte dos consórcios que adquirem as suas obras. Após a venda milionária da peça de Beeple, Hirst tratou de telefonar ao artista para dar os parabéns e expressar a sua admiração. Mais tarde, Hirst também se junta ao hype com uma série NFT. Não é também acidental que encontremos nomes como a Christie’s e a Sotheby’s a dar todos os holofotes aos NFT e ganhando cada vez mais presença no meio.

O mercado da arte tal como o conhecemos está pleno de vicissitudes, constituindo um palco de especulação selvagem, com peças de artistas de renome a ser adquiridas por quantias milionárias e remetidas para armazéns longe da vista de qualquer um, esperando a próxima transação. Os valores atingidos raramente têm ligação à substância estética da obra, e os excessos do mercado da arte são bem evidenciados no percurso de artistas como Damien Hirst ou Jeff Koons. Este mercado não tem qualquer resposta para os problemas da subsistência dos artistas e vias de financiamento da arte, tal como os NFT não têm.

Entretanto, podemos também perguntar-nos: se olharmos para além do aproveitamento especulativo, não estaremos perante mais um momento de rutura na arte, análogo às proposições de Duchamp e da arte conceptual, em que é proposta uma nova forma de desmaterialização da obra de arte para questionar a sua natureza e encontrar novas vias de pensamento estético? Tal como a fotografia, estes momentos de rutura não foram instantâneos e suscitaram longos e profundos ceticismos na sociedade, até à sua inevitável (sabemos agora) normalização.

No entanto, aos NFT e ao meio da “cripto-arte” tem faltado qualquer vislumbre de arrojo ou vanguarda estética. No Everydays de Beeple, como peça de arte digital, é complicado encontrarmos fundamento estético (ou sequer técnico) para justificar todo o hype à volta do artista. Quanto ao seu significado e apreciação estética, encontramos referências racistas, misóginas, humor sexista primário e memes trumpistas datados. O absurdo é salientado pelo editor da ArtNet Ben Davis na sua crítica da obra, quando nos pergunta: “Conseguem imaginar a Christie’s a pendurar uma versão real destas peças nas suas galerias?”. O crítico José Marmeleira caracteriza-a como kitsch, com razão: as obras e as experiências proporcionadas pelos NFT nada propõem em termos de vanguarda estética; correspondem aos formatos correntes dos media digitais (jpegs, gifs animados, loops de vídeo), muitas vezes multiplicados apenas para formar número e empolar o seu valor especulativo. Não surgiram, ainda, novas proposições dos NFT que confirmem novos caminhos para a criação artística e para a subsistência dos artistas; todas as inovações realmente concretizadas têm servido apenas para inflacionar lucros e reforçar o hype.

Beeple, Trump Dominating Covid. Parte da coleção "Everydays" cujo NFT foi vendido na Christie's por 69 milhões de dólares, o valor mais alto até hoje pago por um NFT
Beeple, Trump Dominating Covid. Parte da coleção "Everydays" cujo NFT foi vendido na Christie's por 69 milhões de dólares, o valor mais alto até hoje pago por um NFT

No final, é tudo igual

A economia dos NFT tem vindo a revelar-se tão desigual como a real. As promessas de descentralização e democratização são dificultadas pelo facto que 97% das transações são feitas por apenas 10% dos investidores, É corrente a prática de inflacionar artificialmente o valor de NFTs através do wash trading – transações sucessivas entre várias contas operadas pela mesma entidade, distorcendo os preços. Um estudo recente estima que a maioria das cripto-transações são pessoas a comprar a elas próprias: tal é um crime financeiro nos mercados convencionais, mas as criptomoedas e os NFT ainda operam numa área incerta da lei sem escrutínio significativo por parte das autoridades, permitindo fraudes e excessos.

Face à insuficiência do seu efeito para enaltecer as artes, permitir novas vias de subsistência aos artistas, ou de providenciar qualquer tipo de valor que não de natureza especulativa, conclui-se que os NFT não são uma inovação tecnológica ou social, mas sim instrumentos financeiros não regulados, rodeados de narrativas enganosas e desonestas para tentar segurar e amplificar o seu valor e reputação. Em todo este ecossistema, os artistas acabam a ser usados como beta-testers de um modelo de propriedade perverso, que mantém e expande as desigualdades, sem oferecer qualquer solução plausível a problemas reais da sociedade.

Omitimos neste texto outra característica preocupante dos NFT, que é o seu catastrófico impacto ambiental. Cada transação, além de implicar elevadas taxas canalizadas para os intermediários, implica gastos energéticos significativos por meio dos imensos computadores dedicados, 24 horas por dia, a executar os cálculos necessários para validar as transações. Só os NFT são responsáveis por emissões de dióxido de carbono na ordem das centenas de milhares de toneladas. Para análises mais profundas (e deprimentes) sobre o assunto, recomendam-se as de Memo Akten e sobretudo a de Everest Pipkin.

O conceito da blockchain poderá ter ramificações relevantes para pensarmos o funcionamento de sistemas sócioeconómicos, mas nem os NFT nem as próprias criptomoedas representam qualquer avanço para uma sociedade minimamente progressista. Politicamente e socialmente, como forma de endereçar dilemas e problemas da sociedade, o universo das cripto-moedas é perversamente incoerente e não deve ser levado a sério se estivermos a falar de melhorar a sociedade e não de jogar à roleta.

Mas não é uma opção sorrirmos sobranceiramente na convicção de que, por tudo isto dos NFT parecer especialmente imbecil, o assunto não merece a nossa atenção, e por isso limitarmos o nosso envolvimento no debate a umas tiradas sarcásticas no Twitter. O ponto que nos deve manter atentos e a continuar o debate sobre os NFT é certeiramente articulado por Ryan Broderick: tal como todas as coisas que aconteceram na internet, lá porque algo é estúpido agora, não quer dizer que não vá crescer e tornar-se num autêntico movimento sociopolítico. Já estão a formar lóbis políticos, o que pode pôr em causa a necessidade absoluta de controlar e regulamentar este mercado de apostas experimental.

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