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Descarbonizar a Economia
O aumento da produção e do consumo de bens e serviços, após a II guerra mundial, teve um impacto significativo no crescimento demográfico, principalmente nas sociedades do ocidente, bem como na qualidade de vida das populações. Em 50 anos, a população mundial duplicou e passou a concentrar-se muito mais nas grandes cidades, tornando-se também mais “consumista”1. Parte deste consumo pode atribuir-se à forma como o capitalismo do pós-guerra aprendeu a criar “necessidades”, através das manobras de marketingmais avançadas, para poder escoar os seus produtos (já que geralmente o custo marginal desce à medida que aumenta a produção). No entanto, outra parte do consumo representa ganhos efectivos na qualidade de vida: hoje temos roupa mais confortável, comemos mais refeições quentes, temos mais e melhores cuidados hospitalares e de higiene, as nossas casas são iluminadas e aquecidas, etc… Como é óbvio, a linha que divide estas duas partes do consumo não é absoluta: encontraremos certamente pessoas para quem o vestido da moda é uma necessidade e outras para quem um banho quente é um luxo dispensável. Todavia, o carácter subjectivo do consumo não deve impedir uma discussão política sobre os hábitos que temos actualmente. Aliás, esse debate é central nos dias de hoje por várias razões, uma das quais (a que este texto aborda) é o perigo que estes hábitos de consumo representam tanto para as gerações presentes e futuras como para o planeta, fruto das alterações climáticas provocadas pelo aquecimento global.
O aquecimento global, independentemente das perspectivas mais ou menos pessimistas é uma realidade (e continuará a ser nos próximos tempos). Prevê-se que num prazo de 50 a 100 anos a temperatura da superfície do planeta aumente entre 1 e 3,5graus Celsius2, estimando-se uma intensificação das catástrofes naturais, bem como a destruição de alguns ecossistema. O primeiro passo para a resolução deste problema passa por compreender a forma como a nossa economia se relaciona com ele. E a resposta é simples: a produção de bens (alimentos, vestuário…) ou serviços (transporte, comunicações...) requerem grandes quantidades de energia, cuja esmagadora maioria é obtida através da combustão, libertando-se assim dióxido de carbono (CO2) para atmosfera. Quando andamos de automóvel ou autocarro estamos a queimar combustível e a libertar CO2. Por outro lado, se andamos de metro estamos a utilizar electricidade que é produzida em grande parte por centrais a carvão e gás natural, que também libertam CO2. Assim, a forma como usamos e produzimos energia é a questão central no controlo das emissões de CO2. Em 1996 consumiu-se no mundo 3.5 vezes mais petróleo do que em 19603 e desde a década de 80 até aos dias de hoje a procura de recursos primários para a energia duplicou4. O resultado está à vista: em 2010 a população mundial enviou cerca de 30 mil milhões de toneladas de CO2para atmosfera5.
Descarbonizar a economia passa, pois, por descarbonizar a energia que usamos. E há três formas diferentes de o fazer: apostar na produção de energia através de fontes renováveis, melhorar a eficiência na procura de energia e reduzir o consumo.
Uma aposta na produção de energia através de fontes renováveis implica um forte investimento em tecnologias que ainda estão pouco desenvolvidas e, portanto, têm um custo maior do que as tecnologias correntes. Assim, é normal uma central de energia eólica ter um preço regulado, o que faz com que receba mais do que uma central a carvão ou a gás pela mesma quantidade de energia. Este tipo de regulação é muito criticada pelos partidos da direita pelo facto de não favorecer a igualdade e a transparência no mercado. O que a direita nos diz é que o tipo de energia que utilizamos deve ser apenas determinada pelo custo, recorrendo às “tecnologias rentáveis” (normalmente é nesta fase do discurso que os entusiastas da Nuclear aproveitam para se manifestar, por ser um tipo energia aparentemente mais barata). No entanto, a tarifa regulada ou qualquer outro tipo de investimento colectivo para o desenvolvimento das energias renováveis, são necessários para um sistema energético com menos carbono. Eólica, solar (térmico e fotovoltaico), hídrica, energia das ondas e das marés, etc. são exemplos de bons candidatos ao investimento, desde que sejam sempre tomados em consideração os custos sociais e ambientais que cada instalação pode acarretar.
Actuar no lado da procura de energia pode envolver medidas muito vastas, desde o incentivo à utilização de equipamentos eficientes (como lâmpadas de baixo consumo) até a medidas de carácter mais geral, como grandes transformações no sistema de transportes públicos. Ao contrário da produção renovável, o lado da eficiência no consumo tem sido ignorado pelos sucessivos governos em Portugal, principalmente no que toca a mudanças estruturais. Os edifícios residenciais e de serviços, nos quais se gasta cerca de 30% da energia do país6, são exemplo desta negligência governativa. Uma parte considerável (cerca de 15%) da energia utilizada nos edifícios residenciais é usada para aquecimento ambiente7, devido ao fraco isolamento das casas. Um investimento na requalificação dos edifícios traria poupanças energéticas consideráveis neste sector. Hoje, parte deste investimento, principalmente nos edifícios industriais e de serviços, começa a ser feito pelas ESCOs (Energy Service Companies)8, empresas que, no seu modelo económico inicial, repartem os custos de investimento com o consumidor e lucram através de uma parte da poupança que este obtém na factura energética. Contudo, este sector requer também uma forte presença do Estado (que não existe), particularmente nos grandes centros urbanos, onde é necessário um investimento forte orientado por políticas públicas de reabilitação urbana. Num país que tem 11% das casas desabitadas9 e 38% a precisar de reabilitação10, só uma intervenção pública em larga escala nesta matéria trará efeitos benéficos, não só a nível económico e social, mas também do ponto de vista energético.
Apesar de haver algumas divergências sobre quem faz os investimentos e para quem vão os retornos, o conceito de eficiência energética é quase sempre aplaudido de pé tanto pela esquerda como pela direita. Todavia, o seu impacto na redução de emissões não é linear, principalmente se tivermos em conta os padrões de consumo das sociedades ocidentais. Por exemplo, quando um carro mais económico é colocado no mercado, a tendência é que os seus utilizadores façam mais quilómetros do que faziam, só pelo facto de o novo carro gastar menos. Este fenómeno está estudado, tem o nome de rebound effect11, e dele podemos concluir que não vale a pena criar um fanatismo em torno da eficiência energética sem que antes os comportamentos face ao consumo se alterem. Assim, eliminar desperdícios, através do uso de equipamentos de baixo consumo ou de políticas públicas de carácter mais geral, é uma condição necessária mas não suficiente para alcançarmos cenários de sustentabilidade. Exigem-se, pois, mudanças mais profundas no nosso quotidiano, por forma a reduzir a utilização de energia. A conservação é provavelmente a área com mais potencial para a redução de emissões, mas também é aquela onde é mais difícil a implementação de medidas, não só porque mexe directamente com os hábitos das populações, mas principalmente porque rompe com a lógica do consumo e põem em cheque a hegemonia capitalista. É, portanto, precisamente nesta área que a esquerda ecosocialista tem um forte papel a desempenhar. Lutar por um sistema de transportes públicos que abranja mais gente e que reduza o número de automóveis nas ruas, para além do fortalecimento de um serviço público, é uma resposta ao problema das emissões pela via da conservação. A longo prazo, o problema do aquecimento global só se resolverá com medidas que promovam o abrandamento da produção de bens e serviços. Assim, retomar a luta pela redução do número de horas de trabalho é essencial, não só do ponto de vista do equilíbrio da relação trabalho-capital, mas também do ponto de vista da conservação energética.
Em suma, podemos dizer que a economia mundial depende fortemente das emissões de CO2. Descarbonizá-la implica investir, sob orientação democrática, na produção renovável e na eficiência energética (contrariando a lógica das “tecnologias rentáveis” que a direita nos propõem). Mas este investimento não trará resultados sem a adopção de um novo modelo socioeconómico, que rejeite o “produtivismo” e o “consumismo”, e no qual a exploração dos recursos naturais seja vista como uma forma de atenuar diferenças sociais.
1 Steffen, W., Crutzen, P. J., McNeill, J.R. “The Anthropocene: Are Humans Now Overwhelming the Great Forces of Nature?”, Ambio.Vol. 36, No.8, 36(8):614-21, 2007.
2 Kessel, D.G. “Global warming — facts, assessment, countermeasures”, Journal of Petroleum Science and Engineering, Vol. 36, pp. 157–168, 2000.
3 Ver nota 1.
4 International Energy Agency, “Key World Statistics”, 2010.
5 International Energy Agency, “CO2 emissions from fuel combustion”, 2010.
6 DGEG, “Balanço Energético Português”, 2005.
7 ADENE, “apresentação sobre Sistema Nacional de Certificação Energética e da Qualidade do Ar Interior nos Edifícios (SCE)”, 2009.
8 Central European University, ADEME, World Energy Council “An Assessment of on Energy Service Companies (ESCOs) Worldwide”, 2007.
9 INE, census 2001.
10 INE, “Parque e perfil de conservação”, INE 2005
11 Greening, L. A., Greene, D. L., Difiglio, C., “Energy efficiency and consumption — the rebound effect — a survey”, Energy Policy, Vol. 28, 2000, pp. 389-401.
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