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Condições de eficácia e legitimidade da intervenção do Estado – O caso da política industrial em Portugal
«Temos de tomar decisões estratégicas sobre sectores estratégicos», afirmou Barack Obama, Presidente dos EUA, em Maio de 20091. No auge da crise económica internacional que marcou a primeira década do novo milénio, ficava assim decretado o regresso oficial das políticas dirigidas a actividades produtivas específicas – isto é, da política industrial – neste caso sob a forma de apoios massivos do governo federal americano ao sector bancário e à indústria automóvel. Concomitantemente, os governos Alemão, Francês, Japonês e muitos outros anunciavam medidas de natureza semelhante, dirigidas àqueles e a outros sectores de actividade, e apresentadas como essenciais ao desenvolvimento económico de longo prazo dos respectivos países2.
O regresso em força da política industrial ao discurso oficial dos governos dos países ricos assume contornos de descontinuidade histórica, após três décadas de hegemonia neoliberal no debate sobre a intervenção do Estado no tecido produtivo. Na verdade, os governos nunca se abstiveram de intervir no sentido de promover as condições favoráveis ao crescimento económico, muito para além do exercício das funções minimalistas de regulador e garante do cumprimento da lei. Na generalidade dos países de economia avançada, a acção do Estado estende-se invariavelmente a domínios como a oferta de educação básica e da formação técnica geral, o investimento em infra-estruturas públicas de transportes e comunicações, ou o fomento de actividades públicas de investigação científica e de desenvolvimento tecnológico. Embora tais intervenções sejam consensualmente tidas como essenciais ao crescimento sustentado das economias, elas são tipicamente interpretadas como políticas de natureza ‘horizontal’ – ou seja, políticas que beneficiam a generalidade das actividades económicas e não apenas uma parte destas. É essa transversalidade que torna tais intervenções aceitáveis mesmo por quem desconfia da interferência política directa (e não meramente reguladora) no funcionamento do sistema de preços. Em contraste, as intervenções públicas recentemente anunciadas por grande parte dos países industrializados são explicitamente dirigidas a sectores seleccionados, colidindo com as orientações características do ‘Consenso de Washington’3, que caracterizaram a política económica prosseguida em grande parte dos países ocidentais desde a década de 1980.
Na verdade, as actuais medidas de apoio selectivo ao tecido produtivo encontram uma ressonância inequívoca nas estratégias desenvolvimentistas seguidas em grande parte do mundo subdesenvolvido nas décadas que se seguiram à Segunda Guerra Mundial. Tais estratégias assentavam na noção de que o crescimento económico é indissociável de um desenvolvimento assimétrico dos sectores produtivos, estando recorrentemente ligado à expansão de actividades de maior valor acrescentado, com maiores oportunidades de crescimento da produtividade, dirigidas a segmentos de procura mais dinâmicos e onde a concorrência nos mercados internacionais é menos intensa. Por outras palavras, a mudança estrutural não seria apenas uma consequência, mas também uma das causas do desenvolvimento económico. Como tal, um Estado empenhado em promover o crescimento económico sustentado não poderia deixar de adoptar iniciativas de política visando estimular a expansão dos sectores mais dinâmicos do tecido produtivo. Ou poderia?
Na verdade, o reconhecimento de que a mudança estrutural constitui um factor fundamental do processo de desenvolvimento económico de longo prazo não implica necessariamente que se aceite a bondade da intervenção pública visando a promoção dessa mudança. O crescente domínio da doutrina neoliberal entre os governos ocidentais veio, de facto, questionar a utilidade da política industrial na promoção do crescimento económico. Esta doutrina assenta no pressuposto de que o sistema de preços constitui um mecanismo eficiente de afectação de recursos, pelo que devem ser eliminados todos os obstáculos ao funcionamento ‘livre’ dos mercados. Daqui resulta a defesa da privatização, da remoção do apoio estatal a sectores específicos, bem como da liberalização do comércio externo e do investimento estrangeiro, ingredientes centrais do ‘Consenso de Washington’. Tais medidas visariam uma afectação mais eficiente dos recursos – desde que se permitisse que os sinais de mercado (ou seja, os preços) reflictam devidamente o valor dos bens e serviços que são objecto de transacção, os agentes económicos tomariam as decisões que são do seu interesse e, ao fazê-lo, estariam a contribuir para o desenvolvimento económico.
O debate sobre a política industrial no último meio século girou em torno das vantagens e desvantagens da intervenção pública, reflectindo diferentes avaliações sobre a extensão e relevância das chamadas ‘falhas de mercado’, bem como dos efeitos perversos que podem resultar da tentativa de corrigir eventuais falhas através da intervenção pública. Após várias décadas de confronto teórico e empírico, o resultado deste debate não é de todo conclusivo.
Não obstante, é hoje largamente aceite que o apoio do Estado ao surgimento e à expansão dos sectores mais dinâmicos da actividade económica constituiu um factor fundamental do sucesso de muitos dos países mais ricos, bem como daqueles que foram mais bem sucedidos nos processos de industrialização das últimas décadas. Sendo certo que este argumento contribui para legitimar a defesa da política industrial, o facto de assumir uma natureza histórica torna-o vulnerável à hipótese da não replicabilidade das experiências referidas: de facto, os instrumentos de política que são adequados para um certo nível de desenvolvimento poderão não o ser noutros; as condições políticas institucionais que viabilizaram certas intervenções poderão não se verificar em todos os contextos; e as regras e instituições que governam as relações económicas internacionais são hoje distintas do que foram em períodos passados, alterando a configuração do espaço de políticas passíveis de mobilização em cada país.
O debate sobre a política industrial, mantém-se pois em aberto. A dificuldade em chegar a conclusões inequívocas, porém, não torna o debate menos relevante. Como se viu atrás, as políticas industriais são hoje, como o foram no passado, um elemento central da acção pública. E as evoluções que se têm verificado na concepção e implementação dessas políticas – ao nível das prioridades, dos recursos envolvidos, dos instrumentos utilizados, dos actores mobilizados, dos arranjos institucionais de governação das políticas – não são indiferentes à discussão sobre os benefícios e os riscos associados às políticas públicas. Não sendo sempre possível concluir de forma definitiva, com base em resultados empíricos, sobre a bondade dos argumentos em causa, a sua análise cuidada, associada ao conhecimento detalhado de experiências históricas concretas em contextos diversos, constituem contributos preciosos para melhorar a eficácia e a legitimidade da política industrial.
De facto, o debate académico e político sobre o apoio do Estado a actividades específicas tem vindo a mudar de foco, deixando de estar centrada na sua razão de ser, para incluir de forma crescente a questão das condições políticas e institucionais que favorecem a eficácia e a legitimidade das políticas. No presente contexto discutem-se as condições necessárias à eficácia e à legitimidade de diversos instrumentos de política industrial que têm vindo a ser mobilizados em Portugal nos anos mais recentes.
Há dois motivos fundamentais que tornam o caso português particularmente interessante no presente contexto.
Em primeiro lugar, a necessidade de mudança do perfil de especialização produtiva constitui um dos maiores desafios que se colocam no presente à economia portuguesa. Após várias décadas de convergência com os rendimentos médios dos países da OCDE e da UE, a economia portuguesa opera hoje com custos de produção, nomeadamente salariais, que não permitem competir com base nos preços com as economias asiáticas e os novos Estados Membros da UE do Leste europeu. Por outro lado, os produtos e sectores de actividade em que o país apresenta vantagens comparativas (usando, por exemplo, o Índice de Balassa) estão fortemente correlacionados com o perfil de especialização das economias referidas. Assim, a aceleração da mudança de perfil de especialização, no sentido de reforçar o peso de sectores com maior potencial de crescimento da procura e onde a concorrência internacional é menos intensa, revela-se hoje essencial para evitar uma perda de nível de vida relativo da população portuguesa.
Em segundo lugar, a integração da economia portuguesa em instituições internacionais como a OMC e a UE acarreta um conjunto de restrições ao espaço de possibilidades de política pública que não estavam presentes quando os países que são hoje mais ricos se desenvolveram, e a que muitas das economias emergentes não estão sujeitas (ou não estiveram, até recentemente). Não obstante, a política industrial existe hoje em Portugal. Ela assume formas diversas, nem sempre devidamente compreendidas no seu detalhe e, por conseguinte, pouco discutidas em termos de legitimidade e de eficácia.
É essa discussão que se pretende aqui desenvolver. Tendo esse fim em vista, começa-se por rever os termos fundamentais do debate sobre a racionalidade da política industrial, discutindo-se algumas experiências históricas mais relevantes, bem como a sua replicabilidade para o contexto de uma economia de desenvolvimento intermédio plenamente integrada nos processos de globalização e de integração europeia. Descrevem-se de seguida os principais desafios que enfrenta a economia portuguesa ao nível da mudança do perfil de especialização, bem como um conjunto de políticas que, utilizando instrumentos e sendo conduzidas por actores variados, têm como objectivo explícito promover o desenvolvimento de actividades específicas na economia portuguesa. Conclui-se com a discussão das questões de legitimidade e de eficácia que se colocam à condução da política industrial no caso português.
Em termos gerais, a análise desenvolvida sugere que: (i) quando a natureza das intervenções favorece o escrutínio (interno ou externo à administração pública) das mesmas, a eficácia e a legitimidade da política industrial podem ser prosseguidas potenciando tais possibilidades de escrutínio, o que tenderá a favorecer os processos de aprendizagem institucional; (ii) quando as intervenções estão, pela sua natureza, pouco expostas ao escrutínio por parte de beneficiários ou de uma diversidade de agências públicas, mecanismos alternativos de monitorização, controlo e avaliação independentes deverão ser mobilizados, de forma a minimizar riscos de captura dos recursos públicos por interesses particulares e fomentar processos de aprendizagem conducentes ao aumento da eficácia das intervenções.
Ricardo Paes Mamede
1 Numa entrevista concedida à rede C-SPAN (ver http://www.c-span.org/pdf/obamainterview.pdf).
2 The Economist, 12 de Agosto de 2010.
3 O ‘Consenso de Washington’ corresponde ao conjunto de elementos comuns às estratégias inicialmente formuladas por três instituições sediadas na capital dos EUA – Banco Mundial, Fundo Monetário Internacional (FMI) e Departamento do Tesouro do Governo Federal americano – para lidar com os problemas económicos que assolavam os países da América Latina na década de 1980. Tais elementos incluíam: a eliminação de regulamentos tidos como arbitrários e regras de licenciamento consideradas abusivas; o controlo das despesas públicas e a sua reorientação, removendo o apoio estatal a sectores específicos; uma política monetária centrada no objectivo da estabilidade dos preços; a privatização das empresas estatais; a abertura ao comércio externo e ao investimento estrangeiro. Estas constituem as linhas fundamentais dos planos de ajustamento estrutural adoptados nos países em desenvolvimento como condição para o acesso a financiamento das instituições referidas. Na verdade, embora o ‘Consenso de Washington’ tenha sido concebido para contextos de economias menos avançadas, ele reflecte o paradigma de políticas públicas que se tornou hegemónico desde a década de 1980 nos países de economias avançadas e que se encontra espelhado nas análises e recomendações de organismos internacionais como o FMI, a OCDE e a Comissão Europeia.
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