Via Campesina: soberania alimentar contra a crise

27 de maio 2011 - 12:31
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A Via Campesina internacional inaugurou a sua 5ª Conferência no dia 19, em Maputo, Moçambique, ao ritmo de danças e tambores africanos. Sob o slogan "Soberania Alimentar já! Com a luta e a unidade dos povos!", 600 camponeses, homens e mulheres, representantes de organizações de cerca de 70 países do mundo celebraram a inauguração de seu congresso, que se realiza a cada 4 anos.



Henry Saragih, coordenador geral da Via Campesina, apresentou o progresso e o desenvolvimento da organização nos últimos 4 anos. Segundo ele, o movimento tem fortalecido a sua luta através da formação, de mobilizações pacificas e, o mais importante, através da solidariedade entre os membros da organização. A Via Campesina - da qual faz parte o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST) do Brasil - é um movimento que une "as pessoas humildes de todo o mundo: os trabalhadores e trabalhadoras rurais, cuja voz é ignorada. Através do nosso movimento passamos a ter orgulho de sermos camponeses, passamos a ter dignidade. Isso dá-nos a força para resolver a crise actual e para mudar o mundo", disse Henry Saragih.



A Conferência, que decorreu até ao dia 22 de Outubro, aprovou uma declaração, a Carta de Maputo, que reproduzimos em seguida:





Maputo, Moçambique, 19-22 de Outubro, 2008



O mundo inteiro está em crise.



Uma crise multi-dimensional. De alimentos, de energia, de clima e de finanças. As soluções que o poder propõe - mais livre-comércio, sementes transgénicas, etc - ignoram que a crise resulta do sistema capitalista e do neoliberalismo, e só vão aprofundar os seus impactos. Para encontrar soluções reais, temos de olhar para a Soberania Alimentar que propõe a Via Campesina.



Como chegámos à crise?



Nas últimas décadas, vimos o avanço do capitalismo financeiro e das empresas transnacionais sobre todos os aspectos da agricultura e do sistema alimentar dos países e do mundo. Desde a privatização das sementes e a venda de agrotóxicos, até à compra da colheita, ao processamento dos alimentos, e ao seu transporte, distribuição e venda ao consumidor, tudo já está nas mãos de um número reduzido de empresas. Os alimentos deixaram de ser um direito de todos e todas, e tornaram-se apenas mercadorias. A nossa alimentação está a ser homogeneizada em todo o mundo, com alimentos de má qualidade, preços que as pessoas não podem pagar, e as tradições culinárias dos nossos povos estão a perder-se.



Também vemos uma ofensiva do capital sobre os recursos naturais, como nunca se viu desde os tempos coloniais. A crise da margem de lucro do capital lança-os numa guerra de privatização que os leva a expulsar-nos, camponeses, camponesas, comunidades indígenas, roubando a nossa terra, territórios, florestas, biodiversidade, água e minérios. Um roubo privatizador. Os povos rurais e o meio ambiente estão a ser agredidos. O cultivo de agrocombustíveis em grandes monocultivos industriais também é razão dessa expulsão, falsamente justificada com argumentos sobre crise energética e climática. A realidade por trás destas últimas facetas da crise tem muito mais a ver com a actual matriz de transporte de longa distância dos bens, e individualizado em automóveis, do que com qualquer outra coisa.



Com a crise dos alimentos e com a crise financeira, a situação torna-se mais grave. A mesma crise financeira e a crise dos alimentos estão vinculados à especulação do capital financeiro com os alimentos e a terra, em detrimento das pessoas. Agora, o capital financeiro está desesperado, assaltando os erários públicos para os seus resgates, os quais obrigarão ainda mais os países a fazer cortes orçamentais, condenado-os a maior pobreza e a maior sofrimento. A fome no mundo continua a passos largos. A exploração e todas as violências, em especial a violência contra a mulher, espalham-se pelo mundo. Com a recessão económica nos países ricos, aumenta a xenofobia contra os trabalhadores e trabalhadoras migrantes, com o racismo a tomar grandes proporções e com o aumento da repressão. E com os jovens tendo cada vez menos oportunidades no campo. Isso é o que o modelo dominante oferece.



Ou seja, tudo vai de mal a pior. Contudo, no seio da crise, as oportunidades fazem-se presentes. Oportunidades para o capitalismo, que usa a crise para se reinventar e encontrar novas formas de manter suas taxas de lucro, mas também oportunidades para os movimentos sociais como nós, que defendemos a tese de que o neoliberalismo perde legitimidade entre os povos, e que as instituições financeiras internacionais (Banco Mundial, FMI, OMC) estão a mostrar a sua incapacidade de administrar a crise (além de serem parte dos motivos da crise), criando a possibilidade de que sejam desarticuladas e que outras instituições reguladoras da economia global surjam e que atendam a outros interesses. Está claro que as empresas transnacionais são os verdadeiros inimigos. São os que estão por trás de tudo. Está claro que os governos neoliberais não atendem aos interesses dos povos. Também está claro que a produção mundial de alimentos controlada pelas empresas transnacionais não se faz capaz de alimentar o grande contingente de pessoas neste planeta, enquanto que a Soberania Alimentar, baseada na agricultura camponesa local, se faz mais necessária do que nunca.



O que defendemos na Via Campesina frente a esta realidade?



* A soberania alimentar: Renacionalizar e tirar o capital especulativo da produção dos alimentos é a única saída para a crise dos alimentos. Somente a agricultura camponesa alimenta os povos, enquanto o agronegócio produz para a exportação e sua produção de agrocombustíveis é para alimentar os automóveis, e não para alimentar as pessoas. A Soberania Alimentar baseada na agricultura camponesa é a solução para a crise.



* Frente às crises energéticas e climáticas: a disseminação de um sistema alimentar local, que não se baseia na agricultura industrial nem no transporte a longa distância, eliminaria até 40% das emissões de gases de efeito estufa. A agricultura industrial aquece o planeta, enquanto a agricultura camponesa arrefece.



Uma mudança no padrão do transporte humano para um transporte colectivo e outras mudanças no padrão de consumo são os passos a mais, necessários para enfrentarmos a crise energética e climática.



* A Reforma Agrária genuína e integral, e a defesa do território indígena são essenciais para reverter o processo de expulsão do campo, e para disponibilizar a terra para a produção de alimentos, e não para produzir para a exportação e para combustíveis.



* A agricultura camponesa sustentável: somente a produção camponesa agroecológica pode desvincular o preço dos alimentos do preço do petróleo, recuperar os solos degradados pela agricultura industrial e produzir alimentos saudáveis e próximos para nossas comunidades.



* O avanço das mulheres é o avanço de todos: o fim de todos os tipos de violência para com as mulheres, seja ela física, social ou outras. A conquista da verdadeira paridade de género em todos os espaços internos e instâncias de debates e tomada de decisões são compromissos imprescindíveis para avançar neste momento como movimentos de transformação da sociedade.



* O direito à semente e à água: a semente e a água são as verdadeiras fontes da vida, e são patrimónios dos povos. Não podemos permitir a sua privatização, nem a plantação de sementes transgénicas ou de tecnologia terminator.



* Não à criminalização dos movimentos sociais. Sim à declaração dos Direitos dos Camponeses e Camponesas na ONU, proposta pela Via Campesina. Será um instrumento estratégico no sistema legal internacional para fortalecer a nossa posição e os nossos direitos como camponeses e camponesas.



* A juventude do campo: É necessário abrir, cada vez mais, espaços nos nossos movimentos para incorporar a força e a criatividade da juventude camponesa, com a sua luta para construir o seu futuro no campo.



* Finalmente, nós produzimos e defendemos os alimentos para todos e todas.



Todos e todas participantes da V Conferência da Via Campesina comprometemo-nos com a defesa da agricultura camponesa, com a Soberania Alimentar, com a dignidade, com a vida. Nós colocamos à disposição do mundo as soluções reais para a crise global que estamos a enfrentar hoje. Temos o direito de continuarmos camponeses e camponesas, e temos a responsabilidade de alimentar os nossos povos.



Aqui estamos, nós os camponeses e camponesas do mundo, e negamo-nos a desaparecer.



Soberania Alimentar JÁ! Com a luta e a unidade dos povos!



Globalizemos a luta! Globalizemos a esperança



Publicado originalmente em Adital e Informação Alternativa

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