A vergonhosa violência contra Bradley Manning

16 de março 2011 - 12:52

Os maus tratos a que o suspeito de ser informador da Wikileaks detido está sujeito, são já tortura. Ou o presidente Obama sabe de tudo, ou é hora de assumir que se trata de um assunto da sua responsabilidade. Por Daniel Ellsberg/The Guardian.

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Porta-voz de Quantico, afirmou ao Washington Post que Manning foi colocado em custódia máxima porque, segundo as autoridades, “a fuga pode representar um risco para a vida, a propriedade ou a segurança nacional”. Foto Wikimedia Commons.

O presidente Obama diz que pediu informações ao Pentágono sobre as condições do confinamento de Bradley Manning – o soldado acusado de ter divulgado segredos de Estado. – “Fui informado de que sim, as condições são apropriadas e conforme os nossos padrões básicos. Garantiram-me que são.”

Se Obama acredita nisto, acreditará em qualquer coisa. Seria de esperar que fizesse mais e melhor do que perguntar aos criminosos se estão a agir como devem agir. Posso até ouvir a voz do presidente Nixon, dizendo à imprensa: “Os canalizadores da Casa Branca que assaltaram o escritório do médico de Daniel Ellsberg em Los Angeles informaram-me que os seus actos são apropriados e conforme os nossos padrões básicos.”

Quando afinal se comprovou que aquele comportamento criminoso foi ordenado a partir da Sala Oval, Nixon, para não sofrer uma impugnação, teve de renunciar. Bom, os tempos mudaram. Mas, se o presidente Obama realmente desconhece as reais condições da prisão de Manning – se realmente acredita, como disse, que “parte dos procedimentos adoptados [ser mantido nu, em isolamento, impedido de dormir, sob iluminação directa e sob vigilância de câmaras 24 horas por dia] têm a ver com a preservação da integridade física do prisioneiro”, apesar do laudo do psicólogo da prisão, que diz exactamente o contrário –, então, estão mentindo ao presidente, e é preciso que o presidente retome as rédeas do próprio governo.

Se sabe e aprova os procedimentos inadequados, ou mesmo ilegais, então, é sinal de que já se esqueceu de tudo o que ensinava nas suas aulas de Direito Constitucional.

O presidente recusou-se a comentar o que disse PJ Crowley, para quem o tratamento dado ao soldado Manning é “ridículo, contraproducente, estúpido”. São palavras verdadeiras e, provavelmente, são o máximo a que se pode atrever o porta-voz do Departamento de Estado, comentando acções do Departamento da Defesa. Mas faltam aí mais dois adjectivos: abusivo e ilegal.

Crowley respondia a uma pergunta sobre “tortura” de um cidadão norte-americano, e, pelo que se sabe, não protestou contra esse modo de pôr as coisas. Isolamento prolongado, privação de sono, nudez – são procedimento aprendidos directamente do manual da CIA para “interrogatório estimulado” [ing. “enhanced interrogation”]. Já vimos os mesmos procedimentos aplicados em Guantánamo e Abu Ghraib. Trata-se do que a CIA chama de “tortura sem contacto” [ing. "no-touch torture"], e o objectivo, como no caso do soldado Manning, é claro: desmoralizar alguém a ponto de alguém agradecer quando lhe oferecerem a oportunidade de “confessar” qualquer coisa. É exactamente o caso, como suspeito, com Manning. A ninguém preocupa que a confissão seja falsa ou verdadeira, desde que implique WikiLeaks de qualquer modo que ajude o Departamento de Defesa a acusar e a processar Julian Assange.

São desconfianças minhas, sobre os motivos pelos quais fazem o que fazem, mas nada disso altera a ilegalidade dos procedimentos dos soldados que mantêm preso o soldado Manning. Se eu estiver certo, o tratamento ilegal imposto ao prisioneiro não foi ordenado no plano do oficial encarregado nem do comandante da prisão. O facto de que os maus tratos, o tratamento ilegal e os sofrimentos infligidos ao prisioneiro continuem, apesar de, há semanas, o Conselho Militar do Exército dos EUA encarregado da defesa de Manning ter publicamente protestado e de os procedimentos já terem sido condenados também por organizações como a Amnistia Internacional, sugere que a ordem para torturar pode ter vindo “de cima”, dos altos escalões do Departamento de Defesa e do Departamento de Justiça – ou, mesmo, da própria Casa Branca.

Não é coincidência que alguém do Departamento de Estado esteja hoje na imprensa, autor de comentário que pode ser apresentado como ‘desabafo pessoal’, denunciando também – quem denuncia é o porta-voz do Departamento de Estado! – a tortura do soldado Manning. Quando o braço armado do governo dos EUA zomba do dever de respeitar a lei – especificamente do dever de os EUA não torturarem prisioneiros – os piores efeitos recaem sobre o Departamento de Estado, e afectam a própria imagem dos EUA em todo o mundo.

O facto de que Manning esteja a ser torturado em Quantico – onde fiz meu curso básico de formação de oficial da Marinha, durante nove meses – e de que haja Marines que mentem ao mundo sobre a prisão do soldado Manning, provoca-me um sentimento de vergonha por toda a corporação. Bastaram-me três meses como oficial de infantaria para saber que o que está a acontecer em Quantico é ilegal. Tem de ser contido. Tem de ser disciplinado.


Artigo de Daniel Ellsberg, publicado no jornal britâncio The Guardian. Tradução pelo Colectivo Vila Vudu/Rede Castorphoto