Uma visita à política que o BCE "não faz"

06 de outubro 2011 - 11:23

O Banco Central Europeu (BCE) é independente, “não faz política” – assim rezam os tratados e as definições oficiais. Mas não é como se diz e a principal vítima é a democracia. Veja como... Artigo de José Goulão.

PARTILHAR
“Dentro de um ano a situação em Portugal será comparável à tragédia grega de hoje”, diz Miguel Portas. Foto bernatbernat™/Flickr.

O Banco Central Europeu (BCE) é independente, “não faz política” – assim rezam os tratados e as definições oficiais, salvaguardando-se assim em teoria – e porque os seus dirigentes não são eleitos – o primado da democracia e da política. Diz-se que é assim, supõe-se que é assim, e se assim não for o BCE tem sempre razão, a “realidade é que se engana”, como Miguel Portas disse recentemente ao ainda presidente da instituição, Jean-Claude Trichet.  Miguel Portas participou agora numa visita guiada à realidade do BCE através de uma ilustrativa reportagem do jornalista François Ruffin da Radio France Inter. Ponto de partida: a pergunta “O BCE não faz política…, a sério?!...”

Uma reportagem alternando entre a ficção e a realidade. De um lado, num gabinete do BCE em Frankfurt, a “capital do capital”, um alto quadro da instituição explicando que o banco “não faz imposições”; como entidade independente e dotada do know-how da “técnica monetária”, o seu papel é “dar conselhos”. Principalmente “em alturas de crise damos conselhos; não dizemos aos governos façam isto ou façam aquilo, dizemos ‘deviam fazer isto ou aquilo’, vocês é que decidem”.

Do outro lado um professor de política da Universidade de Grenoble enumerando as consequências dos “conselhos” do BCE: reduções de salários, planos de austeridade, privatizações – “não é isto fazer política?”.

Através desta dicotomia ficção-realidade construída ao longo de vários depoimentos, a reportagem de François Ruffin vai deixando claro o mal de que sofre a Europa, e que a crise tornou mais evidente: o funcionamento da União Europeia, principalmente na sua vertente determinante, para não dizer quase única – a economia e as finanças – baseia-se em decisões de instituições e dirigentes não eleitos. “Não elegemos os banqueiros”, constata Ruffin; “a dominação dos bancos escapa à democracia”.  

Miguel Portas expôs o caso português como exemplo da preponderância das exigências do BCE – num contexto de troika – sobre as decisões dos governos eleitos. Num país onde o salário mínimo é de 425 euros e a média de das reformas é inferior a 300 euros as condições do empréstimo de 78 mil milhões de euros para combater a dívida soberana estão a provocar “uma transferência em massa dos rendimentos do trabalho para o capital”. Grande parte desse empréstimo – 54 mil milhões de euros – destina-se a pagar aos bancos privados que detêm a dívida soberana portuguesa, “em troca de um feroz programa de austeridade”: subida do IVA para 23 por cento incluindo produtos que estavam em escalões de baixa incidência, grandes aumentos de preços de produtos básicos como água e electricidade, congelamentos de salários e pensões, despedimentos cortes drásticos na saúde e na educação...

E quanto “ao grande capital”, acrescentou Miguel Portas, “ficou completamente salvaguardado em nome da necessidade de ter dinheiro para investir”.

Faz-se agora em Portugal, acrescentou o eurodeputado do Bloco de Esquerda, “o que se fez há um ano na Grécia”. E “dentro de um ano a situação em Portugal será comparável à tragédia grega de hoje”.

E tal como na Grécia, notou ainda Miguel Portas, Portugal afunda-se na recessão, que será maior ainda em 2012. “Tivemos dois anos de reformas estruturais e os resultados estão à vista”.

François Ruffin cotejou então as palavras de Miguel Portas com as do presidente do BCE proferidas em recente conferência de imprensa e segundo as quais quando os programas ditados pela troika “falham é porque os governos não fazem os que lhes dissemos para fazer”, isto é, não seguiram os seus “conselhos”. O eurodeputado lembrou então, a propósito, a frase que dirigiu ao próprio Trichet em recente sessão plenária do Parlamento Europeu: “consigo, a realidade é que se engana, o senhor tem sempre razão”.

A reportagem da France Inter deixa claro que só acredita na “independência” do BCE quem quer acreditar. Porque, como demonstra a realidade, a política que o Banco Central (e a troika) “não faz” é mais do que não democrática – é antidemocrática.


Artigo publicado no portal do Bloco no Parlamento Europeu.