A torre da discórdia

18 de março 2016 - 22:00

Edifício em construção em Picoas continua envolto em polémica. Bloco tem denunciado inúmeras ilegalidades na obra, que agora foi suspensa, mas ordem da CML não consta no livro de obra.

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O terreno em questão é o que ocupavam os três edifícios de um e de dois andares. Foto de Estúdio Mário Novais, Biblioteca de Arte da Fundação Calouste Gulbenkian/Flick

A última novidade no edifício que tem estado envolto em discórdia foi a ordem de paragem da obra, que não consta do livro de obra, depois de ter sido denunciada a expansão da construção do edifício além dos limites legais do lote e a posterior tentativa de camuflagem da ilegalidade por parte da Câmara Municipal de Lisboa (CML).

A obra no edifício, sito em Picoas, na Avenida Fontes Pereira de Melo, em frente à Maternidade Alfredo da Costa, um projeto dos arquitetos Diogo Seixas Lopes e Patrícia Barbas, está há meses a ser discutida pela Assembleia Municipal de Lisboa, onde o deputado do Bloco, Ricardo Robles, tem sistematicamente denunciado ilegalidades no processo.

"Este é um caso paradigmático da política de urbanismo da CML. Aos grandes promotores imobiliários tudo é permitido, e neste caso, até construir fora do próprio lote privado avançando para o domínio público. Tudo em nome da máxima rentabilidade dos investidores", denunciou Ricardo Robles ao esquerda.net.

Ordem de paragem não consta no livro de obra

Depois de ser tema de discussão em várias reuniões da AML, o vereador do urbanismo admitiu a ilegalidade e que a obra no edifício foi suspensa, no entanto, esta decisão não consta do livro de obra, documento no qual, segundo a lei, se registam todos os acontecimentos durante a construção de um edifício. 

Ricardo Robles estranha a ausência de documentação do processo “a paragem de uma obra é das coisas mais graves que podem acontecer num processo de construção, não estar escrita no livro de obra é, no mínimo, estranho”. O vereador de Urbanismo da CML, Manuel Salgado, que acompanha a obra desde o seu início, justificou o sucedido, explicando que a decisão foi dada verbalmente.

Esta semana, na reunião da Comissão de Ordenamento do Território, Urbanismo e Reabilitação Urbana, Manuel Salgado definiu a construção em curso como sendo de excepcional interesse para a cidade, e propôs à Comissão a aplicação do limite máximo de uma coima, no âmbito do processo contra-ordenacional relativo às estacas de betão armado já realizadas na Avenida Fontes Pereira de Melo, que pode ir entre os 1500 e os 450 mil euros. 

Este é um caso paradigmático da política de urbanismo da CML. Aos grandes promotores imobiliários tudo é permitido, e neste caso, até construir fora do próprio lote privado avançando para o domínio público. Tudo em nome da máxima rentabilidade dos investidores

O PCP propôs a realização de um inquérito à atuação dos serviços municipais. O Bloco concordou com a aplicação da coima, e foi o único partido a, além disso, exigir a aplicação de medidas exemplares de limitação da construção aos limites originais do lote do terreno. O deputado municipal do Bloco criticou ainda o facto de a ordem de paragem da obra não ter sido entregue por escrito. “A CML não ficou com os seus interesses salvaguardados com esta opção”, afirmou Ricardo Robles, que acrescentou que, “independentemente do que possa ter sido transmitido aos serviços, a obra não parou, como está provado pelo registo no livro de obra”.

Avenida Fontes Pereira de Melo privatizada

Devido à necessidade do promotor imobiliário ter mais espaço para rentabilizar o negócio, nomeadamente na zona nas garagens, na cave, as obras do edifício entraram pela via pública com a anuência do vereador do Urbanismo.

O executivo, tendo conhecimento da ilegalidade das obras fora do lote, nunca mencionou esse facto quando levou a proposta de permuta à Assembleia Municipal de Lisboa (AML), único órgão que autoriza a permuta de terrenos, Só após a denúncia do Bloco de Esquerda, o executivo municipal admitiu as ilegalidades  remetendo toda a responsabilidade para o promotor e empreiteiro. Na realidade, no processo de licenciamento constam documentos que comprovam esta intenção do promotor desde abril de 2015.

O deputado municipal do Bloco, Ricardo Robles, apresentou fotografias da obra no espaço público e denunciou que a proposta de desafetação do domínio público municipal de parte da Avenida 5 de Outubro e de parte da Avenida Fontes Pereira de Melo para que o promotor da torre pudesse construir em espaço público não só era inadmissível do ponto de vista urbanístico, como já estava consumada.

Salgado no centro do mistério da torre que não pára de crescer

Em janeiro de 2015, e por proposta do vereador Manuel Salgado, a CML viabilizou o projeto de uma empresa detida por um antigo governador do Banco de Portugal e antigo presidente da Caixa Geral de Depósitos, António de Sousa, e pelo Banco Espírito Santo. A área de construção era 89% superior ao que tinha sido anteriormente aprovado.

a paragem de uma obra é das coisas mais graves que podem acontecer num processo de construção, não estar escrita no livro de obra é, no mínimo, estranho

Em 2011, o vereador do Urbanismo da Câmara de Lisboa comunicou ao proprietário de quatro edifícios situados na Avenida Fontes de Pereira de Melo que poderia construir no respetivo terreno uma área total de 12.377 m2, para comércio e serviços, em sete pisos acima do solo.

Um ano mais tarde, este terreno foi adquirido por uma empresa criada à época por um antigo governador do Banco de Portugal e antigo presidente da Caixa Geral de Depósitos, António de Sousa, e pelo Banco Espírito Santo (BES).

Já no início deste ano, a câmara ratificou, por proposta de Manuel Salgado, primo direito de Ricardo Salgado, a viabilização, para o mesmo local, de um total de 23.386 m2 de comércio e serviços em 17 pisos. A proposta foi aprovada com os votos a favor dos socialistas e de um vereador dos Cidadãos por Lisboa.

Para justificar esta discrepância, o executivo de António Costa utilizou o argumento inadmissível, mas legal, que o aumento da área de construção se tornou possível com a entrada em vigor, em 2012, de um novo Plano Diretor Municipal (PDM) e de um regulamento municipal de incentivos ao sector imobiliário.

Dúvidas na valorização da propriedade

O anterior proprietário do terreno, o promotor imobiliário Armando Martins, que deteve a empresa Torre da Cidade até julho de 2012, submeteu à Câmara Municipal de Lisboa inúmeros projetos para o local, todos eles rejeitados por não estarem em conformidade com o PDM.

Mediante a crise imobiliária, a Torre da Cidade viu-se, entretanto, forçada a hipotecar os terrenos ao BES contra um empréstimo de 15 milhões de euros, que foram acumulando elevados juros.

A autarquia, por sua vez, e mediante solicitação de António Martins, esclareceu que só autorizava a construção no local de um edifício de comércio e serviços com uma superfície de pavimento de 12.337 m2 e sete pisos acima do solo, ou, em alternativa, um edifício de comércio e habitação com 13.937 m2.

o vereador do Urbanismo admitiu a ilegalidade e que a obra no edifício foi suspensa, no entanto, esta decisão não consta do livro de obra, documento no qual, segundo a lei, se registam todos os acontecimentos durante a construção de um edifício

O executivo de António Costa não fez, na sua resposta, qualquer alusão à possibilidade de os últimos acertos da revisão do PDM e do regulamento de incentivos ao sector, que já estavam a ser preparados pelos serviços camarários, poderem vir a permitir um aumento da área de construção.

Não conseguindo satisfazer as necessidades dos seus parceiros de negócios, que viam posta em causa a viabilidade do seu empreendimento, António Martins vendeu a empresa, por um euro, à Flitptrel, detida em 90% pela Flitptrel Portugal SGPS e participada em 10% pelo BES, banco com o qual celebrou um contrato de cessão dos créditos da Torre da Cidade.

Segundo o Público que inicialmente denunciou o negócio, a Flitptrel Portugal SGPS controla 26 outras sociedades especializadas em adquirir empresas à beira da falência.

Por sua vez, a Flitptrel Portugal SGPS é detida pela luxemburguesa Flitptrel Lux SARL. Esta última é propriedade da Flit-Ptrel, Sicav, controlada em 90% pela Ptrel Management, também sediadas no Luxemburgo. A Ptrel Management é partilhada pela holandesa Fegier Holding BV, que pertence ao empresário português Fernando Esmeraldo, e pela portuguesa Fields Grow, de António Sousa. Ambos os empresários estão à frente da ECS, Sociedade de Capital de Risco.