Reparar

por

Miguel Vale de Almeida

02 de maio 2024 - 15:18
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O mais importante numa discussão sobre reparações é... reparar no racismo. É preciso reparar nele para o reparar para o futuro. De que "gestas" – o trocadilho é intencional – precisamos, até para que no debate público não se caia na armadilha de pensar que aquilo de que se trata é só ou sobretudo de "pagar" ou "indemnizar"?

Cartaz antirracista.
Foto Mariana Carneiro.

O tráfico transatlântico de pessoas escravizadas, em que Portugal foi protagonista, não foi da mesma natureza, grau e consequências que a escravatura noutros contextos históricos e geográficos, incluindo a própria África. Além dos seus aspetos económicos e do seu efeito no enriquecimento da Europa e dos colonialismos de assentamento nas Américas, um dos seus aspetos centrais (para um antropólogo como eu e para a discussão sobre reparações) foi ter criado as condições para a invenção da ideia moderna de "raça" como estrutura de desigualdade e hierarquia. Racismo, portanto, como "justificação" para o que até na época muitos consideravam uma desumanização insustentável.

O colonialismo moderno, mesmo o da época posterior à abolição da escravatura e que levou às lutas de libertação e à Guerra Colonial, assentaria, também ele, nesse racismo, desde o estabelecimento de estatutos cívicos diferentes para as pessoas consoante a sua "raça" (mesmo que versada como "etnia"), ao trabalho forçado como continuação encapotada da escravatura.

No atual período pós-colonial, esta experiência histórica perpetua-se sob outras vestes. Vivemos a herança desses tempos. Tal reflete-se na necessidade de emigrar para a Europa ou no défice, sentido pela maioria dos afrodescendentes, nas estruturas que amparam a vida – da habitação ao ensino, do trabalho à política. Reflete-se também no racismo interpessoal, quotidiano, nas manifestações de preconceito e na violência ou apelo a ela.

Em Portugal é conhecida – e está muito e bem estudada – a negação do racismo. A identidade nacional ainda assenta nas narrativas produzidas pela ditadura. Assente na economia colonial, ela construiu uma narrativa que mistificou a experiência da expansão do Estado português e dos seus colonialismos, ao mesmo tempo omitindo o tráfico de pessoas escravizadas do imaginário e da narrativa nacional.

Como é que uma democracia moderna ainda aceita esta narrativa e nada fez por mudá-la? Considero mesmo que esse foi um dos maiores falhanços destes 50 anos de democracia. A negação do racismo – estrutural, de raiz histórica colonial, e com efeitos nas vidas das pessoas – continua viva. O racismo também, só que não parece perturbar as almas, algo que se nota na indigência com que o tema das reparações é discutido na comunicação social e, pior ainda, entre as lideranças políticas.

O mais importante numa discussão sobre reparações é... reparar no racismo. É preciso reparar nele para o reparar para o futuro. De que "gestas" – o trocadilho é intencional – precisamos, até para que no debate público não se caia na armadilha de pensar que aquilo de que se trata é só ou sobretudo de "pagar" ou "indemnizar"?

Primeiro, a gesta política: é preciso que o Estado, que nos representa como comunidade histórica, peça desculpa – às vítimas, a nós próprios, ao mundo – pelos crimes do tráfico de pessoas escravizadas e pelo colonialismo e suas violências. Não seria anacrónico fazê-lo, pois tanto a escravização quanto o colonialismo foram contestados durante a sua vigência. E tal não afetaria nem substituiria a vontade do Estado em construir pontes e alianças com países de língua oficial portuguesa, ou políticas de imigração e nacionalidade mais justas. Apenas tornaria tudo mais limpo e mais consonante com os princípios constitucionais que nos regem como comunidade.

Segundo, a gesta memorial: o nosso espaço público precisa da nobreza do reconhecimento. Não se trata de "destruir estátuas", de pedra ou mentais, trata-se de contextualizá-las e, sobretudo, de erigir novas. Como é possível, por exemplo, que o memorial da escravatura, aprovado em orçamento participativo em Lisboa, ainda esteja por fazer?

Terceiro, a gesta educacional: os manuais escolares não podem continuar a omitir uma visão mais completa e complexa da expansão e do colonialismo e a projetar uma visão beatífica dos mesmos. Não se trata de escolher entre "Descobrimentos" e "Invasão", trata-se de falar de ambos. Assim como os museus, antes ainda da construção de cuidadas políticas de devolução de objetos, não podem continuar a não contextualizar a história dos mesmos e a não trazer para as políticas expositivas os artistas e intelectuais das comunidades que eles representam.

Quarto, a gesta económica: uma política de cooperação e desenvolvimento efetivamente eficaz, transparente e feita em verdadeira cooperação com os visados, nos países e comunidades historicamente afetadas pela escravização e o colonialismo.

Por fim, a quinta e a mais importante gesta, a da ação afirmativa. Mais importante, porque tem a ver com o presente e com o futuro que se pode construir, e aplica-se aqui, na nossa comunidade. Políticas de ação afirmativa que gerem igualdade de oportunidades para as pessoas e populações afrodescendentes, marginalizadas de forma acrescida pela racialização nas áreas estruturantes da vida e da representação – habitação, ensino, emprego, visibilidade, instituições (incluindo as que devem zelar pelos direitos, das polícias à justiça, e que têm pecado demasiado pelo racismo – na repressão – e pela negação dele – nas sentenças...).

Porquê? Porque além do racismo interpessoal (que, querendo e aplicando-se a lei, se reprime) persiste o racismo estrutural, herança histórica vertida em realidade social, prolongamento das estruturas coloniais no período pós-colonial entre nós. Para mudar as condições estruturais é preciso reparar no racismo, parar de negá-lo, e reparar as condições e oportunidades das vidas dos nossos concidadãos. Concidadãos que podem sofrer de desvantagens iguais às de muitos de nós, mas que são sempre exponenciadas pela racialização. (E uso o "nós" porque sou socialmente classificado como "branco" e vivo esse privilégio – o de pertencer à maioria não racializada).

Não haverá nenhum descalabro na identidade nacional se tivermos a coragem política de avançar para aquelas "gestas". Pelo contrário, será uma renovação e constituirá um progresso. Não fomos capazes de o fazer com a instauração da democracia neste últimos 50 anos? Ou com a redefinição da nossa pertença como europeia, ao aderir à UE? Tudo colapsou com essas mudanças ou simplesmente mais pessoas puderam passar a viver vidas melhores?

Reparemos no racismo, reparemos as suas vítimas, e reparemo-nos como comunidade.

Artigo 

 no jornal Público a 29 de abril de 2024.