O que nos atrai para a escuridão reacionária de Dune?

24 de março 2024 - 16:32

A segunda parte da nova adaptação do romance de ficção científica de 1965 de Frank Herbert, Dune, está nos cinemas. Com a sua mistura, muitas vezes reacionária, de cinismo político, catastrofismo ecológico e orientalismo lúgubre, Dune continua a ser estranhamente atraente para o público de esquerda. Por Chris Dite.

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Dune é uma exploração psicadélica, épica e envolvente das lutas pelo poder e controle social. Também é muitas vezes desajeitado e politicamente nebuloso. Não é muito difícil ver como o romance se tornou extremamente popular através do boca-a-boca em meados da década de 1960. Usa loucamente elementos de quase todas as principais religiões, com uma ênfase obsessiva na experiência interior mística e transcendental.

O seu enredo gira em torno de lutas imperiais cruéis por quotas de mercado e lutas violentas de libertação. Para os adeptos originais da contracultura de Dune – muitos dos quais simultaneamente ingeriam novas drogas muito loucas, romantizavam os movimentos de independência argelinos e vietnamitas e liam novas traduções acessíveis dos Upanixades e do Tao te Ching – deve ter parecido maravilhosamente presciente.

O facto de a franchise ter permanecido consistentemente popular desde então – ainda que não muito bem servida por adaptações cinematográficas anteriores – sugere que algo nela ainda ressoa. Se isso é cinismo político, mitologia do salvador branco, sincretismo consumista, catastrofismo ecológico, orientalismo sinistro ou alguma combinação de tudo isso e muito mais, depende de com quem você fala.

Os governos mentem”

Os avós e pais do autor Frank Herbert faziam parte do movimento socialista cooperativo da era Eugene Debs. Herbert por seu lado, porém, rejeitou essa política coletivista em favor de um individualismo machista e conservador. Na casa dos trinta, trabalhou para uma série de políticos e candidatos republicanos e tornou-se cada vez mais antigovernamental.

Após a sua publicação, Dune, no entanto, tornou-se popular entre um grupo de estudantes hippies de esquerda, mas o próprio Herbert nunca fez parte desse estrato nem se relacionou com ele. Por exemplo, uma das suas influências ao escrever o romance foi S. I. Hayakawa, um académico de semântica. O governador da Califórnia, Ronald Reagan, nomeou especificamente Hayakawa presidente da Universidade Estadual de São Francisco para acabar com uma greve liderada pela Frente de Libertação do Terceiro Mundo, pela União dos Estudantes Negros e pela Federação Americana de Professores.

Hayakawa e Herbert davam-se bem, e Herbert foi convidado para ajudar a enfraquecer a greve conduzindo seminários de escrita em 1968. Ele concordou prontamente.

Após o sucesso de Dune, trabalhou como correspondente da Guerra do Vietname para o Seattle Post-Intelligencer. Apesar da sua oposição à guerra, Herbert apoiou abertamente Richard Nixon. Isto não era tão contra-intuitivo como pode parecer: a principal convicção política de Herbert era que “governos mentem”. Ele argumentou perversamente que os crimes do presidente foram úteis na medida em que convenceriam os americanos a confiar menos no governo.

Herbert pode ter sido contra a Guerra do Vietname mas não era amigo das lutas de libertação anticolonial. Estava preocupado com a cultura e o sofrimento dos nativos americanos, mas mesmo isso era filtrado pelo que a sua família chamava a sua auto-conceção de “grande especialista branco”.

Após a publicação de Dune, isto transformou-se numa fixação do tipo-Quentin Tarantino na ideia de um vingador índio que os seus amigos da etnia quileute tentaram persuadir de que era um produto dos brancos e tinha pouca conexão com a cultura deles. Na mente de Herbert, este anjo indígena da vingança tinha menos a ver com a igualdade radical e mais com um julgamento divino sobre a decadência do governo e da sociedade brancos.

Herbert também era assustadoramente homofóbico, equiparando a homossexualidade à violência e ao colapso da sociedade. Ele deu um sermão ao seu filho Brian sobre como a “energia homossexual reprimida” poderia ser aproveitada pelos exércitos para fins assassinos. Num poema épico não publicado, Herbert escreveu que

Homossexuais,
Burocratas
E bullies
Crescem antes
Que todos, um a um, caiam na escuridão.

Pistas de todas essas visões são evidentes ao longo das novelas de Dune. Quase todos os coletivos da série são delirantes, os seus salvadores políticos são grandes vilões disfarçados, os seus povos indígenas são um castigo divino para as elites homossexuais brancas do tipo desenho animado. Mas o tom também é escorregadio. Embora alguns personagens sejam ridiculamente didáticos, as suas lições muitas vezes resistem a uma categorização ideológica clara, além da desconfiança em relação aos governos.

Uma base de fãs dividida

A base de fãs contemporânea de Dune é infamemente obstinada. Uma verdadeira galeria de malfeitores é apaixonada pelo romance, embora se fixem em aspetos diferentes.

Elon Musk tuíta citações do livro ao lado de fotos dos seus foguetes SpaceX, sem dúvida tiradas com a ideia de um futuro onde as pessoas comuns juram lealdade a grandes homens ricos e às suas empresas. A sua parceira cada vez mais conservadora, Grimes, lançou um álbum concetual baseado no romance (é tudo composto por samples orientais, artimanhas femininas místicas e vagas alusões a um todo maior).

O fascista Richard Spencer procura publicamente as mensagens ocultas de Dune que incentivem à guerra racial. O edgelord libertário Tim Ferris é claramente atraído pela sua representação de governos.

Muitos liberais suaves também adoram. Stephen Colbert está apaixonado, envolvido nos esforços promocionais do filme e admite ter tido fantasias a respeito de ser Paul Atreides quando adolescente. A cantora da tomada de posse de Biden, Lady Gaga, claramente gosta das Bene Gesserit, referenciando o infame teste do Gom Jabbar do romance num dos seus videoclipes.

Dune tem uma voz muitas vezes reacionária, mas o romance também lança um feitiço estranho: um público de mente aberta (ou mesmo decididamente revolucionário) sempre o achou atraente e, francamente, muito divertido. É um prazer culposo para a esquerda mais radical, e não há vergonha nisso. Ninguém anseia por um retorno a um realismo socialista banal e insípido. A ficção de género reacionário pode ser igualmente esclarecedora – embora certamente não da maneira que os seus autores pretendem.

Frank Herbert poderia querer que olhássemos para as suas obras e nos desesperássemos com a humanidade mas ele já se foi há muito tempo. Para ter alguma clareza, às vezes um passeio assustador pela visão de mundo de alguém que você nunca gostaria de ver no comando é o que basta.

Por exemplo, não é apenas divertido vivenciar o Apocalipse através do terror sobrenatural de Selma Lagerloff, Os Milagres do Anticristo, no qual o Falso Profeta é socialista. Também fornece informações sobre como a direita capitalista do século XIX compreendia o cenário do crescente conflito de classes.

O Agente Continental, de Dashiell Hammett (escrito logo após o período em que trabalhou como agente fura-greves para a agência de detetives Pinkerton) permite-nos passear pela auto-imagem fantasiosa de um pistoleiro de aluguer capitalista sem – se possível – sucumbir à mesma ilusão. O livro de Herbert faz algo semelhante em relação à visão de mundo cínica dos conservadores que iriam construir o neoliberalismo.

Coragem e ética”

Pela sua parte, o realizador Denis Villeneuve esforçou-se por considerar a relevância contemporânea do filme como amplamente ecológica. Ele argumenta, como muitos fãs fizeram, que Dune é

sobre como os humanos precisam conquistar o nosso destino para mudar o mundo, e é uma espécie de apelo à ação para mudarmos as coisas, especificamente para os jovens… precisamos de mudar nosso modo de vida. Vamos precisar mudar a nossa forma de lidar com a natureza e com o mundo e isso exige muita coragem e ética. E acho que Dune é um apelo a isso.

A proposta ecológica de Villeneuve é um ponto de discussão útil, considerando que o protagonista de Dune, em última análise, responde a este apelo implementando um fascismo imperial que abrange toda a galáxia, que mata bilhões e escraviza muitos mais.

À medida que a extrema-direita se torna lentamente mais experiente na incorporação da catástrofe climática na sua visão do mundo e na sua política prática, a questão de saber até que ponto a esquerda responde de forma convincente a este apelo à mudança é exatamente o “o que fazer” do nosso tempo. Frank Herbert, apesar de todos os seus defeitos, foi inflexível ao afirmar que o messianismo, o fascismo e o imperialismo não eram a resposta certa ao desastre ambiental. Nisso, pelo menos, a maioria de nós pode concordar.


Chris Dite é professor e sindicalista.

Este texto foi escrito em 2021 na altura em que saiu o primeira parte do filme de Denis Villeneuve.

Texto publicado na Jacobina. Traduzido por Fábio Fernandes. Editado pelo Esquerda.net para português de Portugal.

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