As mulheres de Maria Lamas

11 de fevereiro 2024 - 17:19

Para “As Mulheres do Meu País” e, na falta de fotografias de todas as situações que queria ilustrar, Maria Lamas decidiu ser ela própria a fotografar. São estas fotografias que estão expostas, até 28 de maio na Fundação Calouste Gulbenkian (entrada livre, 10h-18h). Artigo de Nuno Pinheiro.

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Exposição As Mulheres de Maria Lamas até 28 de maio na Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa (entrada livre, 10h-18h) – Foto de Nuno Pinheiro
Exposição As Mulheres de Maria Lamas até 28 de maio na Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa (entrada livre, 10h-18h) – Foto de Nuno Pinheiro

Entre os livros que por serem grandes e com belas encadernações que havia em casa dos meus pais e me mereciam alguma reverência, contam-se “As Mulheres do Meus País” e “A Mulher no Mundo”. Maria Lamas estava presente também no cartão do Conselho Nacional das Mulheres Portuguesas de minha mãe, que tinha a sua assinatura e na compra mensal das “Modas e Bordados” que dirigiu. Tudo se justifica, Maria Lamas é uma figura cimeira do Século XX português.

Maria Lamas decidiu lançar-se nesta obra, “As Mulheres do Meu País”, depois de o salazarismo ter revertido a sua breve abertura a seguir à guerra e ter proibido o Conselho Nacional das Mulheres Portuguesas. Para “As Mulheres do Meu País” e, na falta de fotografias de todas as situações que queria ilustrar, decidiu ser ela própria a fotografar. São estas fotografias que estão expostas, até 28 de maio (raio de data) na Fundação Calouste Gulbenkian (entrada livre, 10h-18h). A escolha de Jorge Calado (curador da exposição), foi expor preferencialmente as impressões originais que são, geralmente de pequeno formato. Ganha-se em autenticidade, talvez se perca em visibilidade.

Maria Lamas não era fotógrafa e vi algumas pessoas perturbadas com a qualidade das fotografias. Já o curador da exposição compara, de forma completamente oposta, algumas fotografias a obras maiores da história da fotografia, como “Migrant Mother” de Dorothea Lange, ou o retrato da sociedade alemã anterior ao nazismo por August Sander. A fazer alguma comparação fá-la-ia com a Spanish Village de W. Eugene Smith que é contemporânea do trabalho de Maria Lamas e também reflete a realidade ibérica. Acho que estas visões são exageradas, e, apesar de o interesse ser sobretudo documental, e não cheguem ao estatuto de obras-primas (que Calado sugere), são imagens esteticamente bem conseguidas.

As fotografias mostram a vida dura das mulheres sobretudo no campo em Portugal de meados do século XX. As expostas são, sobretudo da Serra da Estrela, região de Aveiro, Porto e algumas do Sul. São cruas e realistas numa declaração política contra o Estado Novo. É uma abordagem oposta à tentativa de romancear, como fazia a tradição da fotografia portuguesa de tipos populares desde Carlos Relvas, ou à da da mulher vestida de preto em que até Cartier-Bresson caiu, nas fotografias que fez em Portugal em 1955.

Estas mulheres não são o povo que lava no rio, na aldeia da roupa branca, nem as que, pobres, mas sempre felizes, o folclore do Estado Novo apresentava. São reais, a sua vida é real, ligada ao campo, aos seus trabalhos, duros e primitivos, com pouca mecanização. Puxam carros, levam cestas e sacas à cabeça, não são poupadas aos trabalhos mais duros. Algumas já estão a trabalhar jovens, muito jovens, outras preparam-se para isso, desde a mais tenra infância.

Ligadas aos animais que também trabalham e que produzem a lã, o leite, a carne. Vida de sementeiras e fracas colheitas. Também não são humildes e miseráveis, olham de frente para a câmara, mesmo com a miséria e a ditadura não perdem a dignidade. Sorriem, às vezes, como se tivessem ouvido Maria Lamas falar do direito à felicidade.

Os homens estão ausentes, às vezes por estar nas fábricas (e lá estão as mulheres a levar-lhes o almoço), outras por estar na pesca que, como no bacalhau, os punha muitos meses no mar, e eram as mulheres a organizar toda a vida familiar.

Com mais pose que ação, planos relativamente próximos, já que era preciso mostrar o ambiente que as rodeava, são, por vezes semelhantes a fotografias mais antigas, à fotografia antropológica e etnográfica de finais do século XIX. Também se aproxima destas na vontade de sistematização, ausente da maior parte da fotografia sua contemporânea. Se a técnica fotográfica o permitisse, muitas destas fotografias poderiam ter sido feitas um século antes, tal é a imagem de estagnação e falta de progresso.

Ainda conheci este país. Mesmo com alguma modernização nos anos 60, em 1974 era possível encontrar cenas como as fotografadas por Maria Lamas.

A obra de Maria Lamas era um estudo, mas também uma revolta contra o regime. Pergunta-se sempre, nestas situações, se continua atual. Não, felizmente não, porém é importante conhecer o que era o Portugal rural de há 60 ou 70 anos, e esta é uma forma magnifica de o fazer.

Só espero ter convencido o/a leitor/a a visitar a exposição.

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