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“A literatura serve para inquietar e despertar as pessoas para a realidade”

Em entrevista ao esquerda.net, Lídia Jorge assume-se como uma romancista apesar da sua obra literária contemplar outros géneros e fala-nos ainda da sua visão do país, da necessidade de preservar a memória e das causas em que se empenha como a defesa dos jovens angolanos a quem devemos a nossa solidariedade porque tiveram a coragem de enfrentar um regime plutocrata e tirano. Por Pedro Ferreira.

Acaba de publicar o seu quarto livro de contos a que deu o título “O Amor em Lobito Bay” (edições D.Quoixote) e cuja ação se desenrola em três continentes e em tempos diferentes. O que é que une estas histórias?

São revelações inesperadas, são contos contados porque quem escreve é uma personagem que é depositária de um segredo e todos eles são confissões de outras personagens para o autor que acabam por se  transformar em testemunhos.

Chama-lhe revelações inesperadas. Porquê?

Porque permitem viajar na trajetória mental de outras figuras. A literatura consiste em tirar uma roupagem daquilo que parece para depois revelar um outro nível de realidade que está submersa.

É esse o fio condutor entre as várias histórias?

Sim. Eu gosto de fazer isso nos livros de contos porque é uma espécie de exercício, uma síntese que se faz em torno desse conhecimento que, no fundo, é a revelação dada pelo outro.

Mas disse que os contos são um intervalo entre romances. Significa que de alguma maneira desvaloriza este género?

De maneira nenhuma. Acontece é que o romance envolve-nos completamente, é uma grande árvore e por isso exige muito tempo e dedicação. O que, por razões óbvias, não acontece no conto.

Como é que o conto se revela para o escritor?

Quando estamos a escrever podem aparecer pequenas histórias, mas que não estão lá no romance porque são unidades que ficaram suspensas e enquanto o romance não se cimenta há ali um intervalo em que se faz uma espécie de treino de mão e de síntese, porque este assim o exige.

Entre os vários géneros literários onde é que situa o conto?

Está entre a narrativa com detalhes e o poema que é a síntese. O conto fica aí, no meio e tem esse elemento de mistério mais apurado do que propriamente o romance que vive de outras instâncias, vive no fundo do mistério.

Do mistério e também de suspense porque as histórias vão avançando com uma série de peripécias até o leitor conseguir unir todas as peças do puzzle que vai sendo construído. Este aspeto é muito evidente na trama dos nove contos que dão corpo ao seu mais recente livro.

O conto vive precisamente desse mistério porque há sempre algo que perturba, que inquieta, que choca e que não se resolve. No fundo, o conto pretende sempre encontrar uma resposta que, no entanto, nunca é verdadeiramente uma solução.

O facto de não haver soluções é propositado ou resulta antes de uma impossibilidade de as encontrar?

Na literatura, independentemente do género, nunca há soluções quando muito pode haver o esboço de uma resposta.

A que se fica a dever essa ausência de respostas?

A literatura não é um remédio.

Escreve para distrair as pessoas ou, ao invés, para as aproximar da realidade da vida?

Quando falamos da realidade entramos num campo algo complexo que envolve vários níveis porque entramos na área social, política, entre outras. Mas eu distancio-me da noção de literatura como panaceia, como elemento de quietude, algo que sirva para tranquilizar os leitores porque não é essa a função da literatura.

E qual é então?

Ela serve para despertar e inquietar as pessoas, colocá-las perante aquilo que é o mistério da vida.

O Arthur Koestler dizia que o sentimento poético é um sentimento eminentemente trágico e o sentimento trágico é aquele que não deixa que as coisas fiquem no lugar.

E o papel da literatura é dar essa visão de desordem?

Não lhe chamaria desordem pelo menos de uma forma taxativa. Acontece que a literatura não vem para dizer estejam quietos, vem para nos acordar porque há outras realidades e a maior de todas é esta: não sabemos nada da vida, mas sabemos que existem outros seres humanos como nós. Essa é a dimensão da realidade que é muito importante para mim.

Regressemos à sua última obra. O título do primeiro conto é também o do livro. Há alguma razão ou foi uma escolha aleatória?

Não foi um acaso porque foi esse conto que me disse que era preciso juntar todos os outros.

“O Amor em Lobito Bay” é a relação da descoberta da violência por oposição a uma proposta de amor, essa luta que existe nas pessoas, nas famílias, na educação, na criação. Este conto é o que revela melhor essa realidade.

Funcionou como detonador para os restantes?

Diria que ele é a capa porque neste título podem inscrever-se os outros. Aliás todos os contos do livro podiam chamar-se “ O Amor em qualquer parte...”

Não corre o risco de nos estar a transmitir uma ideia que funciona como uma sobreposição do mesmo principio? Ou é finalmente o amor o fio condutor que liga as nove histórias?

Não há redundâncias mas em todos elas deparamo-nos com a mesma situação que passa pela revelação de uma surpresa de amor. Dou como exemplo o conto que se chama “Dama Polaca Voando em Limusine Preta” que, reconheço, é um título um pouco rebarbativo em que a mulher pensa que está junto de um amante que a vai matar até descobrir que ele tem uma dimensão de amor imensa e indescritível.

Este aspeto tem a ver com outra coisa que é a ideia de que na pior paisagem há uma proposta de entendimento, uma janela de ternura. E todos os contos do livro acabam por ter esse lado.

Em todos eles há uma história de amor?

Sim, mas gostaria de frisar que não são textos beatos, não têm nada a ver com contos beatos.

Mas é de amor que nos falam todos eles.

O amor está sempre presente embora no seu sentido mais amplo que acompanha a experiência da confiança na vida com o desconcerto do mundo.

O conto “Passagem para Mariot” dá-nos um retrato violento que atravessa o nosso tempo, uma espécie de fotografia em que as pessoas são reduzidas a números.

É uma marca impressivado momento que vivemos, ou seja, o homem quantitativo, o homem numerável, algo que é terrível, esmagador.

E vê saída para esta realidade a que qualifica como “aniquilamento de um mundo”?

A luta contra este estado em que nos encontramos move muitas pessoas que vêem essa onda gigantesca que aniquila as pessoas transformando-as em meros serviçais. Hoje, há a intenção de reduzir as pessoas a meros produtores.

A luta contra este estado em que nos encontramos move muitas pessoas que vêem essa onda gigantesca que aniquila as pessoas transformando-as em meros serviçais. Hoje, há a intenção de reduzir as pessoas a meros produtores.

Desta forma, muitas teorias que estavam praticamente enterradas ressurgiram de novo e esse facto implica que tenhamos de repensar de novo a sociedade para que ela possa ser menos desigual e consequentemente mais decente.

Na apresentação do livro disse que quando duas pessoas se encontram ou falam ou matam-se. Concretamente, e se não for uma expressão meramente literária, o que é que isso significa ?

Em boa verdade, ninguém aguenta só a presença do outro porque é incomodativa tornado-se um 'objeto' absurdamente estranho e inimigo. Por isso, a fala é essencial porque só ela nos permite ser o prolongamento do outro.

Mas não acha que é uma ideia um pouco excessiva?

É uma frase muito densa, mas em termos de imagem poderia dizer que é uma espécie de telhado de um edifício enorme. Se não se estabelece o diálogo não conseguimos sobreviver em grupo.

Começou a sua carreira literária em 1980 com a publicação do livro "O Dia dos Prodígios” onde uma comunidade rural se confunde com a chegada do 25 de Abril incorporando-o no seu imaginário mágico-mítico. Mais uma vez, a História e as suas contradições.

Ela é sempre contraditória porque as sociedade não são homogéneas. E depois há o esquecimento que por um lado é um bem porque nos permite continuar a viver mas comporta igualmente o risco de não fazer justiça ao que foi positivo, sobretudo se não deixar que a clareza da contradição histórica passe para as novas gerações.

E o 25 de Abril a que recorre com alguma frequência nos seus romances encerra também essas contradições?

A revolução era inevitável. Eu estava em África e tinha a perceção que, mais cedo ou mais tarde, algo iria acontecer.

A abordagem que faço deste período nos meus livros não visa, no entanto, eliminar a leitura do tempo como ele é porque o contraditório faz parte da literatura e, desta forma, ela deve ser o oposto do apologético, do unívoco, do sentimento que se confina ao glorioso ou ao infernal.

A História acaba sempre por nos devorar?

A História é sempre brutal e é preciso não esquecer que já na Antiguidade o tempo era representado por um Deus, Saturno, que devorava os seus próprios filhos. Muitas vezes, os melhores, os grandes construtores dos momentos históricos são completamente apagados, mal entendidos e amarfanhados.

Aconteceu isso com alguns construtores do 25 de Abril?

Acontece em todos os momentos e ainda mais naqueles que são marcas indeléveis na vida de um país.

É preciso recuperar o caminho da memória?

É fundamental tanto mais que na minha opinião estamos sempre à beira de uma guerra e sempre à beira de a evitar. E são estes dois sentimentos que devem pautar a nossa conduta, ou seja, a ideia de que nunca nada está ganho de forma definitiva.

Considera-se acima de tudo uma romancista?

Sou acima de tudo uma romancista porque gosto que o principio esteja longe do fim.

É no romance que me sinto bem, mais feliz embora goste também de outros géneros como o conto e a poesia.

A sua escrita tem contornos que por vezes são marcadamente poéticos.

Eu escrevo poesia mas tenho pudor em publicá-la porque Portugal tem poetas extraordinários e eu tenho a ideia de que a poesia que faço são“outras narrativas”. Julgo que os poetas não têm essa sensação quando entram no romance. A poesia é o ponto culminante da literatura.

É uma mulher de causas e recentemente participou em Lisboa numa iniciativa de solidariedade com os jovens angolanos condenados pelo regime daquele país africano. Como é que descreve Angola 40 anos após a independência?

É um país que um dia há-de ter uma democracia. Neste momento é uma plutocracia com determinado tipo de hábitos que estão muito enraizados na sociedade. Por isso, o processo de democratização levará o seu tempo.

Lídia Jorge na sessão de solidariedade com os presos angolanos.

Não antevê uma mudança no curto prazo?

De maneira nenhuma. Se nós portugueses ainda temos dificuldades em ser democratas e estamos no contexto europeu, imagine-se em África onde o panorama é muito mais complicado.

Ainda vê entorses na democracia portuguesa?

Ainda continuamos com medo de falar em voz alta, trocamos a palavra pelo pão, ainda não sabemos discutir em público, ainda atropelamos aqueles que são contra nós em vez de falarmos com argumentos, enfim ainda nos odiamos e insultamos.

Mas Angola é um caso sério?

Sem dúvida. Tem uma elite poderosíssima mas está ainda muito longe de ser uma democracia.

Por isso, tenho imenso respeito por esses rapazes que, percebendo isso, foram capazes de se atirar para diante e fazer frente a um poder totalitário e esmagador.

Há neste momento em Angola uma fação que está a resistir em nome desse futuro que se calhar será longínquo e nós portugueses que tivemos uma experiência de uma ditadura tão manhosa, tão longa e tão trágica, temos o dever de nos pormos ao lado deles.

Como é que a escrita entrou na sua vida?

Não foi um acidente. Em minha casa havia muitos livros e eu acabei por me tornar leitora em voz alta para a família. Isso deu-me o sabor das palavras, o sabor das frases.

Foi também relevante o facto de ser uma miúda sozinha em casa e perceber que os livros dialogavam. Tudo isto concorreu para que tivesse começado a inventar histórias e personagens e a escrever.

Pesa-lhe o facto de atualmente ser a romancista portuguesa viva mais relevante?

Não sei se isso é assim mas se for convivo normalmente com essa situação. Não tenho uma carreira, não gosto da palavra, vou antes fazendo um caminho e aceito com naturalidade que um dia realcem o meu trabalho e que no outro o critiquem. Podem até esquecer-se de mim. Há grandes escritores de que já ninguém fala. Acima de tudo sou e serei sempre uma entre os outros e não uma fora dos outros, ou se quiser acima dos outros. Não gosto dessa postura de superioridade que alguns escritores acabam por adotar.

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