Investigações à morte de Pablo Neruda

12 de janeiro 2016 - 23:46
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As investigações à morte de Pablo Neruda despertam-me releitura de algumas páginas do livro “Paula” de Isabel Allende. Artigo de José Lopes

Pablo Neruda faleceu em 23 de setembro de 1973

Em finais de 2015, as notícias trouxeram de novo à memória coletiva a relação entre o sangrento golpe de Estado no Chile, que derrubou e assassinou o presidente socialista Salvador Allende, a 11 de setembro de 1973, impondo uma longa ditadura neste país da América Latina, e a morte do poeta Pablo Neruda a 23 de setembro.

Essas notícias voltam a questionar aquele período negro da história do Chile e, nesta relação particular de leitor, despertaram-me a releitura de algumas das páginas do livro “Paula” de Isabel Allende, em que dedica alguns testemunhos na primeira pessoa, sobre um acontecimento político com diferentes versões.

Esse acontecimento pode vir a ter finalmente uma decisão judicial, quando se aproxima o mês de março de 2016, dado como prazo para a entrega do resultado sobre as investigações que decorrem de provas científicas que detetaram “o gérmen do estafilococos aureus nos restos mortais de Pablo Neruda”, segundo relatório do Ministério do Interior do Chile.

Este relatório causou grande impacto no país sul-americano com títulos na imprensa, como, “Chile se aproxima da verdade sobre a morte de Neruda e pede cautela” (El País, 07/11/2015). As notícias sobre as conclusões do relatório oficial vinham-se sucedendo como “altamente provável que Neruda tenha sido assassinado”. Uma conclusão que levou o motorista de Pablo Neruda, Manuel Araya a afirmar, “que sentia uma alegria muito grande pelo fato de a verdade estar sendo estabelecida e por terem escutado seu testemunho. Se não, isso teria morrido no esquecimento”. (El País, 05/11/2015)

Trata-se de um dos episódios ainda por sarar dos períodos de terror no Chile, que são narrados pela escritora Isabel Allende, em algumas das suas obras literárias, como este seu testemunho partilhado no livro “Paula”, uma obra considerada “mais próximo da intimidade fragmentada do diário e da narrativa oral do que da arquitectura elaborada do romance”. (Colecção Mil Folhas do jornal Público, 1994). Trata-se de um livro dedicado à sua filha Paula que morreu, a 6 de dezembro de 1992 aos 28 anos com uma grave doença depois de um longo período em coma em que a escritora, prima de Salvador Allende, faz a narração de uma “lenda familiar” à filha, para que, “quando despertares não te sentirás tão perdida”. (Colecção Mil Folhas do jornal Público, 1994).

Mas se nos capítulos das vivências e dramas familiares narradas neste seu livro, se pode estar, “perante literatura como terapia ou como exorcismo”. (Colecção Mil Folhas do jornal Público, 1994). O mesmo não veio a acontecer no capítulo da morte de Pablo Neruda, pois quatro décadas depois continuam-se a procurar respostas para um acontecimento que Isabel Allende escreveu genuinamente nas suas páginas “intimas e simultaneamente universais”, partilhando com os leitores o seu encontro com o poeta antes do golpe militar, cujos “fantasmas” dificilmente podem ser exorcisados.

(...) No Inverno de 1973, Pablo Neruda convidou-me a ir visitá-lo na Isla Negra. O poeta estava doente, deixou o seu lugar na Embaixada de Paris e instalou-se no Chile na sua casa da costa, onde ditava as suas memórias e escrevia os seus últimos versos contemplando o mar. Preparei-me muito para esse encontro, comprei um gravador novo, fiz listas de perguntas, reli parte da sua obra e algumas biografias, (...) Falou das memórias que tentava escrever antes que a morte lhas roubasse, (...) Referiu-se demoradamente à situação política, que o enchia de angústia, e embargou-se-lhe a voz a falar do seu país dividido em extremismos violentos. Os jornais da direita publicavam títulos a seis colunas: “Chilenos, acumulem ódio!” e incitavam os militares a tomar o poder e a Allende a renunciar à presidência ou suicidar-se, como fizera o presidente Balmaceda no século passado para evitar uma guerra civil.

- Deviam ter mais cuidado com o que pedem, não venha a ser que o consigam – suspirou o poeta.

- No Chile nunca haverá um golpe militar, Don Pablo. As nossas Forças Armadas respeitam a democracia – tentei eu tranquilizá-lo com aqueles clichés tantas vezes repetidos.

Mas a verdade é que, perante um mundo atónico, a tragédia protagonizada pelos militares sobre o povo do Chile, aconteceu mesmo e deixou episódios tão insuperáveis como a suspeita da morte de Pablo Neruda, naquele dia 23 de setembro de 1973 que o jornalista e historiador Mário Amorós abordaria no seu recente livro “Ilha Negra”, referindo “em especial aquela tarde, está enevoada, cheia de meandros intrincados”. (El País, 05/11/2015). Contributos para não deixar esquecer um tema incómodo, após o caso Neruda ter sido aberto em 2011, quando o motorista do poeta, Manuel Araya, denunciou o assassinato, como narrou também, Christian Palma, a correspondente em Santiago do Chile de Carta Maior, que escreveu: “Em 11 de setembro de 1973 o governo de Salvador Allende é derrubado por um golpe de estado protagonizado por Augusto Pinochet, durante o qual a casa na Isla Negra do poeta prémio Nobel de Literatura Pablo Neruda é saqueada e seus livros queimados. Enquanto tudo isso ocorre, o poeta está no hospital, afetado por um cancro da próstata, moribundo, e pede notícias. Às vezes consegue dormir, às vezes delira. Desde que escutou na rádio as últimas palavras de seu amigo Salvador Allende, Neruda foi se apagando aos poucos. Finalmente morreu no dia 23 desse mês fatídico”. De entre os escritos de Neruda a jornalista destacou, “Dos desertos do salitre, das minas submarinas de carvão, das alturas terríveis onde se faz o cobre e de onde é extraído com trabalhos inumanos das mãos de meu povo, surgiu um movimento libertador de magnitude grandiosa. Esse movimento levou à presidência do Chile um homem chamado Salvador Allende, para que realizasse reformas e tomasse medidas de justiça inadiáveis, para que nossas riquezas nacionais fossem resgatadas das garras estrangeiras”. Pensamento do poeta que Pinochet não perdoou e daí as decisivas e polémicas declarações do seu motorista, “Manuel Arada, afirma que Pablo Neruda foi assassinado por agentes do regime militar, como o assegurou, numa entrevista publicada na revista mexicana Proceso”. Testemunho que assumiu perante a comunicação social, depois de saber da abertura do processo judicial, “Estou à disposição de tudo o que venha pela frente: não tenho medo porque tenho a verdade. Aqui não há ninguém mais que tenha a verdade, porque eu sou o único, eu vivi os últimos dias com ele”. (Carta Maior, 11/09/2011).

Avanços e recuos na investigação

[caption align="right"] Pablo Neruda e a esposa, Matilde Urrutia[/caption]

Numa espécie de retrospetiva relativamente à evolução de todo este processo com avanços e recuos na investigação, ainda foi possível assistir a notícias com apressadas conclusões favoráveis aos setores conservadores que desejavam ver o tema silenciado e, sobretudo, negada qualquer conclusão de crime, fazendo eco em vários órgãos de comunicação social com títulos demasiado taxativos para a referida fase de investigação, tais como: “Exame descarta que Pablo Neruda tenha morrido envenenado no Chile”, insistindo na versão de que, “ele morreu de câncer de próstata”. (Globo.com, 08/11/2015). Uma versão sobre eventual relatório médico, que a escritora não sustentou no seu livro “Paula”, quando recorreu às memórias daquele fatídico dia, ao escrever: (...) a 23 de Setembro de 1973, doze dias após o Golpe Militar, morreu Pablo Neruda. Estava doente e os tristes acontecimentos desses dias acabaram com a sua vontade de viver. Agonizou na sua cama na Ilha Negra olhando, sem o ver, o mar que se desfazia contra as rochas por baixo da sua janela. Matilde, sua esposa, tinha estabelecido um círculo hermético em redor dele para que não penetrassem notícias do que estava a suceder no país, mas de alguma forma o poeta veio a saber dos milhares de prisioneiros, supliciados e mortos. Destroçaram as mãos de Victor Jara, foi como matar um rouxinol, e diz-se que ele cantava, cantava e isso ainda mais os enraivecia; que está a acontecer? Ficaram todos loucos? Murmurava o poeta com a vista extraviada. Começou a sufocar e levaram-no numa ambulância para uma clínica de Santiago. Enquanto chegavam centenas de telegramas de vários governos do mundo a oferecerem asilo político ao poeta do Prémio Nobel, alguns embaixadores foram pessoalmente convencê-lo a partir, mas ele não queria ficar longe da sua terra naqueles tempos de cataclismo. Não posso abandonar o meu povo, não posso fugir, prometa-me que também não vai, pediu ele à mulher e ela anuiu. As últimas palavras desse homem que cantou a vida foram: vão fuzilá-lo, vão fuzilá-lo. A enfermeira deu-lhe um calmante, adormeceu profundamente e não voltou a acordar. A morte deixou-lhe nos lábios o sorriso irónico dos seus melhores dias, quando se mascarava para divertir os amigos. Nesse preciso momento numa célula do Estádio Nacional torturavam selvaticamente o seu condutor para lhe extorquir sabe-se lá que inútil confissão sobre aquele velho e pacífico poeta. Foi velado na sua casa azul do Cerro San Cristóbal, invadida pela tropa que a deixou em ruínas; espalhados por toda a parte ficaram destroços das suas figuras de cerâmica, das suas garrafas, das bonecas, dos relógios, dos quadros, o que não puderam levar com eles quebraram-no e queimaram-no. Corria água e lama pelo chão coberto de vidros partidos, que ao serem pisados produziam um som de entrechocar de ossos, Matilde passou a noite no meio daqueles destroços sentada numa cadeira ao pé do caixão do homem que compôs para ela os mais belos versos de amor, acompanhada pelos poucos amigos que se atreveram a atravessar o cerco policial em volta da casa e desafiar o toque de recolher. Enterraram-no no dia seguinte numa cova emprestada, num funeral eriçado de metralhadoras ladeando as ruas por onde passou o negro cortejo. Poucos puderam ir com ele no seu último percurso, os seus amigos estavam presos ou escondidos e outros temiam as represálias. Com as minhas companheiras de revista desfilámos lentamente com cravos vermelhos nas mãos gritando: 'Pablo Neruda! Presente, agora e sempre!' diante dos olhares raivosos dos soldados, todos iguais sob os seus capacetes de guerra, com as caras pintadas para não serem reconhecidos e com as armas a tremer-lhes nas mãos. A meio caminho alguém gritou: 'Companheiro Salvador Allende' e todos respondemos em uníssono: 'Presente, agora e sempre'. Assim o enterro do poeta jazia também para honrar a morte do Presidente, cujo corpo jazia numa cova anónima num cemitério de outra cidade. Os mortos não descansam em sepulturas sem nome, disse-me um velho um velho que caminhava a meu lado. Ao voltar a casa escrevi a carta diária à minha mãe descrevendo-lhe o funeral; ficou guardada junto com outras e oito anos depois ela entregou-ma e pude incluí-la quase textualmente no meu primeiro romance.(...)

A pista de envenenamento aguarda decisão judicial

[caption align="left"] Salvador Allende e Pablo Neruda[/caption]

Se “os mortos não descansam em sepulturas sem nome”, mesmo quando durante muitos anos os comprometidos com a ditadura tudo fizeram para apagar os vestígios mais horrendos da sua repressão fascista, de todos os assassinatos, prisões e desaparecimentos dos crimes do ditador chileno Augusto Pinochet, que, “faleceu sem ter cumprido um único ano de prisão. Ironicamente foi em nome dos direitos humanos que os seus advogados o conseguiram manter longe das grades”. (Esquerda.net, 08/09/2013 segundo artigo publicado no portal Opera Mundi). Agora, no respeito pelos milhares de mortos que foram vítimas de um regime sanguinário e neste caso, pela memória de Pablo Neruda. Ainda que passados todos estes anos a dúvida sobre a morte do poeta e Prémio Nobel da Literatura de 1971 persiste. A investigação continua a merecer atenção do mundo e naturalmente da imprensa portuguesa. “A justiça chilena vai reabrir a investigação sobre a morte do poeta Pablo Neruda para averiguar as suspeitas de que ele foi envenenado” (Diário de Noticias, 22/01/2015). Quase um ano depois, era reafirmado que, “A possibilidade de o poeta chileno ter sido assassinado é umas das revelações da biografia Neruda” (Diário de Noticias, 24/11/2015) ou ainda, “Afinal, Pablo Neruda pode mesmo ter morrido às mãos de Pinochet” (Expresso, 06/11/2015).

Seria no entanto o documento oficial do Ministério do Interior do Governo do Chile que despoletaria manchetes e informação mais aprofundada sobre novos rumos de investigação que passaram a assumir que o poeta não morreu “em consequência do cancro de próstata de que padecia”, mas, “aplicaram-lhe uma injeção ou o fizeram ingerir algo que teria precipitado a sua morte, seis horas e meia depois”. Uma revelação incluída na nova biografia de Neruda, escrita pelo historiador Mario Amorós, cujo livro publicado em Espanha e no Chile durante o mês de novembro de 2015 se intitula, “Neruda. El Principe de los Poetas”. (El País, 05/11/2015). O jornal espanhol recordava ainda as declarações do académico da faculdade de Medicina da Universidade do País Basco, Etxeberria, que participa na segunda prova pericial, com médicos forenses e especialistas internacionais de países como Estados Unidos, Canadá, Espanha e outras nações europeias, em que lembra, que, “Nesse dia ele está sozinho na clínica, onde já estava havia cinco dias, seu estado piora, telefona para sua mulher, Matilde Urrutia, para que vá imediatamente para lá porque diz que lhe aplicaram algo e não se sente bem. Por fim, morre pouco depois, para surpresa de todos, em uma clínica boa, e se estabelece a suspeita”, referindo-se à substância “gérmen do estafilococos aureus”, que, “se for alterado e aplicado em altas doses pode produzir a morte de uma pessoa”, lembrou este especialista que recorda a propósito, “o antecedente da morte do ex-presidente chileno Eduardo Frei em janeiro de 1982”. Suspeitas a que igualmente se refere no mesmo jornal o juiz Mario Carroza, a quem caberá determinar a verdade final desta investigação, com base no relatório governamental e nas provas científicas sobre a detetada substância “gérmen” cujo resultado de laboratório é aguardado pelo magistrado “para ditar a sentença”, que deverá ser determinada após ser conhecido o relatório final que tem como prazo de entrega o mês de março deste ano (2016). Este juiz chegou mesmo a afirmar, a propósito das possibilidades de envenenamento por tal substância, segundo escreve o mesmo jornal, que, “No governo militar trabalharam com substâncias químicas em laboratórios para eliminar pessoas, e o presidente Frei é uma das vítimas. O que se supõe é que isto pode ter sido iniciado tão logo começou o golpe de Estado, porque dias depois morreu Neruda, e no seu caso pode ter sido o gérmen”. (El País 05/11/2015).

O atual processo de investigações à morte de Neruda e as suas previsíveis conclusões, dariam certamente na altura da produção do livro “Paula” em 1994, novos e impressionantes elementos para serem narrados e ficcionados com toda a força e testemunho pessoal da escritora, que assim terminou as suas referências ao poeta e à sua morte, escrevendo: (...) o punho da ditadura ainda nos apertava. Fui à Isla Negra visitar a casa de Pablo Neruda, abandonada durante muitos anos, na qual o fantasma do velho poeta ainda se senta diante do mar a escrever versos imortais e onde o vento faz soar a grande sineta marinheira para convocar as gaivotas. Na cerca de madeira que rodeia a propriedade há centenas de mensagens, muitas escritas a lápis sobre as sombras diluídas de outras já apagadas pelos caprichos do clima, algumas gravadas à faca na madeira corroída pelo sal do mar. São recados de esperança para o vate que continua a viver no coração do seu povo.

Artigo de José Lopes

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