Entrevista a Eduardo Sousa: “Não sou um editor do efémero”

07 de março 2016 - 8:27

Começou a definir aquele que viria a ser o seu percurso profissional de livreiro e editor quando entrou, pela mão de Soveral Martins, em meados dos anos 70 para a Centelha, editora independente que tinha sido criada em Coimbra no rescaldo da crise académica de 1969, percebendo então a importância que os livros têm na formação de uma consciência cívica e humanista. Por Pedro Ferreira

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Vítor Silva Tavares ( à esq.) que faleceu em Setembro de 2015 e Eduardo Sousa. Foto Letra Livre.

Depois de ter passado por várias editoras, fundou a Letra Livre mantendo-se sempre distante daquilo a que o poeta José Gomes Ferreira chamou um dia "a literatura-prostituição de segunda ordem".

Hoje, em liberdade e sem censura, deteta sinais preocupantes na sociedade portuguesa e, na atividade à qual se ligou, rema contra a maré da mercantilização que tem vindo a impor uma lógica de degradação no setor livreiro e editorial onde o lucro fácil e imediato são a regra. A censura é hoje ditada pela asfixia da procura incessante dos best-sellers cujas edições se multiplicam a um ritmo alucinante impostas pelos grandes grupos editoriais que têm como único objectivo fazer dinheiro.

Editor de “livros impossíveis”, renega o “rolo compressor” do “facilitismo” e está por isso disposto a pagar o preço da ousadia de não desistir de escritores como Aquilino ou Herculano, e da coragem de ter no seu catálogo obras de filosofia, política, sociologia e poesia.

Podemos considerá-lo um editor altruísta?

Sou um pequeno editor e livreiro que sabe que há lugar para a qualidade. O conhecimento não se adquire no palco do 'espectáculo imediatista' que morre pouco tempo depois sem acrescentar nada de novo.

E é aí que se situa maioritariamente a área editorial nos dias de hoje?

Podemos dizer que sim. A realidade é que os grandes grupos económicos tomaram conta de muitas editoras, destruíram fisicamente milhares de livros porque acharam que não se vendiam e, desta forma, trouxeram para o setor a prevalência do principio de ganhar dinheiro rapidamente e em força.

Mas não é esse o objectivo de qualquer negócio ?

Obviamente que sim. Resta saber quais são os caminhos que se escolhem para se chegar lá.

[caption align="left"]O Abundante lixo literário . Imagem Letra Livre.O abundante lixo literário que se vai editando. Imagem Letra Livre.[/caption]

Não é através das vendas?

Temos de ter algum cuidado quando falamos do negócio editorial porque este tem características muito próprias. Os livros são um bem de primeira necessidade mas podem ser perniciosos se não tiverem um mínimo de qualidade e arrastarem quem os lê para uma visão acrítica daquilo que os rodeia.

Por isso, quando falamos de livros temos que ter em atenção que estes são, na sua maioria, de venda mais lenta porque a qualidade não tem prazo de validade.

Mas essa linha de pensamento não está ultrapassada?

Se estivesse eu já não estaria aqui porque a falência já me tinha vindo bater à porta.

Mas a realidade mudou com o aparecimento desses grandes aglomerados editoriais.

Infelizmente, houve muitos pequenos e médios editores que tiveram de fechar as portas porque não conseguiram resistir ao espartilho que tende a deformar a realidade transformando a leitura numa espécie de hobbie, algo para os tempos livres. O livro não pode ser um objeto de entretenimento. Isso é inaceitável.

Enquanto pequeno editor sente-se no no fio da navalha?

Não diria isso porque apesar de não me considerar um otimista, julgo que o caminho que está a ser seguido por esses grupos não vai durar muitos anos.

Mas se dá dinheiro...

A questão é que as megastores que pululam por aí têm milhares de livros mas são todos iguais. Em cada 10 livros que são lançados para o mercado com o intuito de chegaram a best-sellers apenas um ou dois consegue vender bem. O resto é um fracasso e desaparece num ápice. O que fica, aquilo perdura, são os clássicos.

Mas nem todas as pessoas têm apetência ou gosto para ler determinados livros. A sua análise não poderá estar a remeter o livro para um círculo mais fechado onde só cabem as pessoas com níveis de instrução mais elevados?

Isso leva-nos a outras questões, como por exemplo, saber como está o ensino do português e até que ponto este estimula a leitura. Na minha opinião, há um erro crasso que passa pela adoção dos resumos. Surpreende-me que os pedagogos deste país optem por esta via sabendo que Portugal tem índices de leitura muito baixos, dos mais baixos da Europa.

Está a dizer que temos hoje uma população com níveis de escolarização elevada ou mesmo muito elevada, mas continuamos no fim da linha em relação aos níveis de leitura. Porque é que isso acontece?

Há seguramente razões e algumas delas passam pelo sistema de ensino que temos. Há muito que essa questão dos círculos fechados devia estar ultrapassada. Se nem toda a gente lê, pelo menos com regularidade, é porque não é estimulada para o fazer, é porque não tem curiosidade intelectual.

Mas hoje, há imensas solicitações e os ritmos de vida são por vezes muito violentos. E depois, a maioria da população é pobre e os livros são caros.

A questão está sobretudo na qualidade daquilo que se edita. Muitas pessoas são empurradas como já disse para a 'edição-espectáculo'. Alguém que aparece regularmente nas televisões, um assunto que durante algum tempo anda de boca em boca. Mas tudo se esfuma ao fim de pouco tempo sem acrescentar nada de valor.

Mas não é preferível ler do que não ler. Não poderá ser o início de um caminho para mais tarde algumas pessoas acabarem por se tornar mais exigentes nas suas escolhas?

Essa análise é antiga e por isso já se discute há algum tempo. Na minha opinião, a leitura daquilo que não tem qualidade raramente espoleta a necessidade da procura daquilo que vale a pena ser lido.

O gosto educa-se?

Com certeza que sim. E há imensos escritores de qualidade, há livros de todos os géneros que são extraordinários. Mas estão esgotados. E não se reeditam, porque há quem considere que não se vendem.

E assim decidem o que lemos, como diz André Schiffrin no livro “ O Negócio do Livros” que foi editado em Portugal pela sua editora?

Esse livro resulta a experiência que ele tem tido enquanto editor no Reino Unido. Por isso, considero que, independentemente de ter sido eu publicá-lo, devia merecer mais atenção da imprensa.

E porque é que não lhe foi dada essa atenção?

Porque põe o dedo na ferida. Em geral, a imprensa tem também um papel negativo nesta questão. Os suplementos literários desapareceram e no seu lugar surgiram os roteiros de viagens e gastronómicos. Ficou a pseudo-crítica de certos livros, em geral originários do Reino Unido ou dos Estados Unidos de editoras ligadas a esses órgãos de informação. Assim, torna-se evidente que não interessa falar desse livro.

Se a crítica literária é assim, não seria então mais lógico chamar-lhe publicidade?

A crítica literária de qualidade só existe marginalmente. Em relação à outra, chamem-lhe o que quiserem, mas não a misturem com a seriedade que deve acompanhar a crítica de um livro.

[caption align="right"]"Portugal tem índices de leitura muito baixos, dos mais baixos da Europa", lamenta Eduardo Sousa. Foto Letra Livre.[/caption]

Falando ainda de Schiffrin, o autor refere que “os livros podem permitir-se ir contra a corrente, lançar novas ideias, desafiar o satu quo na esperança de que, com o tempo, se atinja um público”. É esse o objetivo que tem enquanto editor e livreiro?

Se a literatura não tivesse essa capacidade e eu essa expetativa, seguramente que não estaria nesta profissão.

Está então imbuído de uma missão?

De maneira nenhuma embora não conceba a vida sem livros. Considero-me antes um libertário e um resistente de muitas coisas.

As chamadas novas tecnologias fazem hoje parte do dia a dia das pessoas. Preocupa-o, por exemplo, a desmaterialização dos livros?

Sem dúvida que sim. A internet produz, como já disse, um conhecimento pouco estruturado, com alicerces muito frágeis e leva as pessoas a pensar que através dela conseguem saber tudo. Muitas vezes acabam por saber muito pouco. É uma ilusão.

Mas a Letra Livre também faz uso da internet.

Para divulgação dos livros, para chegar a mais pessoas. Desse ponto de vista é uma ferramenta essencial.

Não está a ser contraditório com o que disse anteriormente?

Não, não tenho nada contra a internet. E naturalmente, faço uso dela.

Mas ela está a matar os jornais. Não poderá acontecer o mesmo em relação aos livros?

O futuro é aquilo que nós quisermos que ele seja, passe a evidência do lugar-comum. O jornalismo têm outros problemas, mas eu não acredito na sua morte. Sobretudo se falarmos naqueles que ainda privilegiam a informação em detrimento do infotainment.

No que diz respeito aos grandes grupos editoriais penso que a maioria acabará por desaparecer. O livro não é, nem de perto nem de longe, a sua principal área de negócio e essa “galinha dos ovos de ouro” chamada best-seller acabará por se esgotar porque, como já disse, a aposta é grande e os sucessos são escassos.

E ficarão as editoras independentes, as que conseguirem resistir a este tempo?

Muitas já desapareceram tal como livrarias por causa da especulação imobiliária que se faz sentir em maior escala nas grandes cidades. No entanto, a literatura de qualidade, aquela que resiste à passagem do tempo, ficará porque é necessária e terá sempre quem a procure.

Afinal, é um optimista.

Não sou. Mas estou neste mercado de ideias, para utilizar uma expressão feliz do Schiffrin, trabalhando de uma forma livre porque só desta forma é possível fintar o imediato. E eu não sou, não quero ser um editor do efémero. Não esqueço que a minha ligação ao mundo editorial começou após a viragem histórica operada neste país, o momento em que a liberdade venceu a opressão. E, apesar de todas as mordaças, os livros foram muito importantes nessa mudança. Estou convicto que continuarão a sê-lo no futuro.

O Abundante lixo literário . Imagem Letra Livre.