Itália

Em véspera do dia da Libertação, Meloni ataca aborto e RAI censura antifascista

25 de abril 2024 - 14:36

Uma nova lei permite o acesso de grupos “pró-vida” a mulheres que pretendem abortar. Um autor antifascista foi “desconvidado” de fazer um monólogo sobre o 25 de Abril na RAI adensando as críticas à instrumentalização da televisão pública.

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Meloni, primeira-ministra italiana.
Meloni, primeira-ministra italiana. Foto do governo de Itália.

Esta terça-feira, o Senado italiano aprovou uma lei que permite aos grupos que pretendem ilegalizar o aborto em qualquer circunstância e defendem a prisão das mulheres que recorram à interrupção voluntária da gravidez, aceder aos locais onde se procede a esta intervenção e possam contactar com quem pretende abortar.

A medida foi promovida pelo governo de extrema-direita de Giorgia Meloni e teve 95 votos a favor e 68 contra. Na letra da lei, fica escrito que estes "grupos com experiência qualificada de apoio à maternidade" podem ter acesso às mulheres para dar “aconselhamento”. Só que médicos e grupos de defesa do planeamento familiar têm realçado que os grupos em questão não têm qualificações médicas ou de acompanhamento psicológico e têm como único objetivo pressionar para que a mulher não aborte.

Desde 1978 que em Itália a interrupção voluntária da gravidez até às 12 semanas é permitida e até mais tarde em caso de riscos para a saúde da mulher. Como em Portugal, a lei é torpedeada pelo princípio da “objeção de consciência” do pessoal de saúde, que impede muitas vezes as mulheres de ter acesso a este procedimento na sua região ou em tempo legal.

Meloni, que concorreu com uma plataforma política assente no “Deus, pátria, família”, o slogan fascista que ela designa como um “manifesto de amor”, não ataca diretamente a lei 194 e nas eleições comprometeu-se até a mantê-la, apesar de se declarar “anti-aborto”. A primeira-ministra italiana alega estar a cumprir o espírito da lei original que propunha aconselhamento sobre “alternativas” ao aborto e defende que a presença dos grupos “pró-vida” faz parte das “garantias de escolha livre” porque será preciso “ter toda a informação e oportunidades disponíveis”.

A senadora do Partido Democrata, social-liberal, Cecilia D’Elia, contrapõe que apesar das juras de que não se pretende boicotar a lei 194, “a verdade é que a direita se opõe à autonomia reprodutiva das mulheres, teme as escolhas das mulheres relativamente à maternidade, sexualidade e aborto”.

Um 25 de Abril a discutir censura

Em Itália, o 25 de Abril é o dia da libertação do fascismo. Mas este ano, a data está a ser marcada pelo debate à volta da censura. A RAI, a televisão pública italiana, cancelou por “razões editoriais” um monólogo sobre o fascismo que deveria ter sido transmitido no seu canal 3 e para o qual tinha sido convidado um escritor anti-fascista.

Antonio Scurati, autor de um sucesso de vendas sobre Mussolini, “M., o filho do século” dizia que o governo decidiu reescrever a história: “o grupo dominante pós-fascista, depois de vencer as eleições em Outubro de 2022, tinha dois caminhos pela frente: repudiar o seu passado neofascista ou tentar reescrever a história. Sem dúvida ele escolheu o segundo caminho”.

Apesar do cancelamento, as suas palavras não foram silenciadas, no programa Chesarà, Serena Bortone, leu o monólogo como manifestação de solidariedade. Este foi ainda publicado em vários jornais.

O controlo partidário a que está sujeito o canal valeu-lhe já o nome de “Telemeloni”. O sindicato dos jornalistas da RAI, o Usigrai, tem criticado as ingerências. Este fim de semana, acusou a direção desta de, para além de “silenciar” Scurati, instalar um “sistema de controlo sufocante que está a fazer mal à RAI, aos seus trabalhadores e a todos os cidadãos”. Também a Federação Europeia de Jornalista criticou há pouco tempo as alterações de regras que passaram a permitir que os ministros passem tenham mais tempo de antena.

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Outro sinal, para além de ter sido trocada a direção do canal por uma mais favorável, liderada pelo diretor-geral Giampaolo Rossi, que em 2019 declarou que o “antifascismo” era “uma caricatura paradoxal e uma tentativa de deter o sentido da história”, é o editor sénior da RAI, Paolo Corsini, em dezembro, ter participado num comício do partido de Meloni, alinhando-se claramente com o poder.

Elly Schlein, a dirigente do Partido Democrata, conclui de tudo isto que “a RAI já não é serviço público mas está transformada num megafone do governo”.

Meloni, por sua vez, vitimiza-se, e diz que pertence “àqueles que sempre foram ostracizados e censurados pelo serviço público” e que, por isso, “nunca vão pedir a censura de ninguém, nem daqueles que pensam que a sua propaganda contra o governo deve ser paga com o dinheiro dos cidadãos”. Sugeriu que o que se tinha passado é que a estação televisiva se tinha recusado pagar uma soma muito elevada por uma pequena intervenção televisiva. A direção do canal apoia-a. O autor rebate que o valor que lhe seria pago está em linha com o habitual. Performativamente, Meloni acabou também ela por publicar o texto do monólogo para que “o povo italiano possa julgar livremente o seu conteúdo”.

A líder do partido Irmãos de Itália, herdeiro do Movimento Social Italiano fundado pelos seguidores de Mussolini, tem, nas suas declarações recentes, tentado gerir a relação com este passado através de um distanciamento tático. Diz ser um tema “entregue à história” ou que nunca simpatizou com o fascismo. Mais desbocados, vários dos seus correligionários vão apresentando uma versão diferente.

O balanço deste exercício constava do que Scurati tinha para dizer: “obstinadamente presa à linha ideológica da sua cultura de origem neofascista: distanciou-se das brutalidades indefensáveis perpetradas pelo regime (a perseguição aos judeus) sem nunca repudiar a experiência fascista como um todo”.