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Augusto Boal: O subversivo maravilhoso

No seu testamento, propôs: “Temos a obrigação de inventar outro mundo porque sabemos que outro mundo é possível. Mas cabe-nos construí-lo com as nossas mãos entrando em cena, no palco e na vida”. Artigo de Paulo Cannabrava Filho, publicado em Outras Palavras.
Encenação de “Murro em ponta de faca”, do Boal, com direção de Paulo José, em 2013. Em cena, Laura Haddad, Gabriel Gorosito, Erica Migon, Sidy Correa, Abílio Ramos e Nena Inoue. Imagem de Roberto Reitenbach.

Boal queria transformar o mundo. Queria um mundo em que as pessoas pudessem realizar-se em todo o seu potencial. Quando voltou dos Estados Unidos, em 1956, veio com uma das mais poderosas armas para o desenvolvimento humano. Veio com o teatro incorporado ao seu ser, acreditando que Stanislavski o ajudaria a levar a cabo a revolução cultural necessária. E reinventou o teatro.

Naquela época, o Brasil reinventava-se em todos os aspectos da criatividade humana: reformas de base, teatro, cinema novo, bossa nova, poesia concreta, CPC da UNE, democracia, CGT/Puai , Congresso de Trabalhadores Agrícolas, projeto nacional de desenvolvimento, plano trienal…. sim, o Brasil reinventava-se.

As metrópoles temerosas de perder a sua fonte de riqueza deram o golpe. O teatro já não era suficiente para enfrentar a ditadura civil-militar que teimava em anular cada uma das conquistas do povo brasileiro. Liquidaram os partidos de expressão popular, fecharam o Congresso, intervieram nos sindicatos e organizações estudantis, anularam e caçaram a inteligência e as lideranças nacionais.

Diante da impossibilidade de atuar e avançar politicamente, comunistas, católicos, democratas das mais diversas cores partiram para a luta armada, como opção para livrar o país dos seus algozes. Amigo de Carlos Marighella e Câmara Ferreira, Augusto Boal não ficou indiferente aos novos desafios. Só o teatro já não bastava como arma para devolver a liberdade e a democracia ao povo brasileiro. Preso, torturado, saiu para o exílio e continuou a fazer do teatro a sua arena de luta a favor da libertação dos povos. Boal jamais se recuperou das sequelas da tortura: três ou mais cirurgias no joelho e, finalmente, a leucemia que mais tarde o levou deste mundo.

No exílio, Boal continuou a ser perseguido e torturado pela ditadura. Deixaram-no sem passaporte. A ditadura também me deixou sem passaporte. É terrível, pois no exterior o passaporte é o único documento válido e nós precisávamos de trabalhar para sobreviver. Além disso, Boal queria mostrar o seu teatro ao mundo. Um teatro já evoluído para uma ação consciencializadora, capaz de despertar as pessoas a olhar além do seu próprio umbigo e encarar crítica e criativamente a realidade.

Idibal Piveta, advogado, seguidor dos ensinamentos de Boal, que como poeta e teatrólogo é o Cesar Vieira do “União e Olho Vivo”, requereu um mandado de injunção contra a União pelo absurdo de negar passaporte a um cidadão. O caso foi parar ao Superior Tribunal de Justiça que razão a Boal por nove votos a favor e dois contra. Na sessão seguinte foi julgado o meu processo e os juízes votaram onze a zero. Fixou-se jurisprudência e a partir daí todos os brasileiros que estavam no exílio sem passaporte puderam requerer nas embaixadas e permanecer devidamente documentados.

Em 1969 encontramo-nos em Cuba. Depois, encontrávamo-nos uma vez ou outra em Buenos Aires. Na Argentina, ele criou o Teatro Invisível, uma forma de fazer manifestação política em ambientes públicos, como em autocarros, metro etc. Nessa época ele mostrou o seu teatro no Festival de Nancy (1971) e ganhou seu primeiro prémio internacional. Antes já tinha sido premiado em São Paulo em reconhecimento da sua obra e do seu trabalho no Teatro de Arena.

Quando o governo revolucionário de Velasco Alvarado, no Peru, iniciou a reforma na educação, na realidade uma revolução cultural que começava com uma estratégia de alfabetização e outra de educação, sugeri a Salazar Bondy que convidasse Boal para ajudar-nos na formação dos quadros que formariam o contingente de educadores. Salazar Bondy, educador, filósofo, epistemologista, era o executivo do Ministério de Educação, responsável pelo principal projeto da revolução peruana: a formação do homem novo.

Foram momentos maravilhosos conviver com Salazar Bondy, assim como poder interagir com lideranças de uma cultura milenar como a andina. Sei que essa experiência influenciou profundamente o Boal. Foi aí que, aplicando a técnica do Teatro Invisível, criou o Teatro Fórum para trabalhar os conflitos interrelacionais.

Em 1978 Boal foi para a França e, no ano seguinte, o seu Teatro do Oprimido estava a provocar uma ebulição no meio intelectual francês com repercussão por vários países da Europa. Impressionante como essa ideia extravasou fronteiras. A acumulação das experiências levou-o a utilizar o teatro como terapia, materializado no Arco-Íris do Desejo.

Em 1986 Boal aceitou o convite formulado por Darcy Ribeiro, secretário de Educação do Rio de Janeiro no governo de Leonel Brizola, e foi dirigir a Fábrica de Teatro Popular. A partir dessa época, permaneceu no Brasil a desenvolver o seu projeto, dando palestras, viajando pelo mundo a fim de difundir as suas ideias e as suas técnicas.

Em 1992 foi eleito vereador na cidade do Rio de Janeiro e aproveitou a experiência para mais uma das suas criações: o Teatro Legislativo. Mais uma ferramenta de ação cultural conscientizadora, através da qual estimulava o povo a pensar a legislação necessária.

Em 2008 o processo de amnistia a Boal, que estava parado há cerca de nove anos, foi para julgamento na Comissão de Amnistia. Num primeiro momento, para a burocracia, Boal não poderia receber indemnização mensal e continuada porque não existia prova documental de que trabalhava e de quanto recebia mensalmente quando foi preso, torturado e forçado a um exílio de mais de dez anos.

Chegaram centenas de cartas e emails do mundo inteiro a testemunhar o trabalho e a importância de Boal. Nem ele mesmo tinha ideia de tal abrangência da sua contribuição para a ação cultural através do teatro no mundo. Felizmente, a comissão entendeu que, como diretor do Teatro de Arena, Boal não poderia ter contrato assinado, mas era remunerado como qualquer outro diretor teatral. A reparação foi concedida.

A concessão da amnistia aliviou um pouco a situação da família. No entanto, a essa altura Boal já estava bastante doente. Em 27 de março de 2009, teve a alegria de receber da Unesco o título de Embaixador Mundial do Teatro. Inegavelmente, o seu discurso, mais do que uma despedida é um testamentoii. Deixa-nos a sua mensagem de sempre: “O teatro não pode ser apenas um evento – é uma forma de vida! Atores somos todos nós, e cidadão não é aquele que vive em sociedade: é aquele que a transforma!”

Em homenagem a Augusto Boal transcrevo o seu discurso:

“Todas as sociedades humanas são espetaculares no seu quotidiano, e produzem espetáculos em momentos especiais. São espetaculares como forma de organização social, e produzem espetáculos como este que vieram ver.

“Mesmo quando inconscientes, as relações humanas são estruturadas em forma teatral: o uso do espaço, a linguagem do corpo, a escolha das palavras e a modulação das vozes, o confronto de ideias e paixões, tudo o que fazemos no palco fazemos sempre nas nossas vidas: nós somos teatro!

“Não só casamentos e funerais são espetáculos, mas também os rituais quotidianos que, por sua familiaridade, não nos chegam à consciência. Não só pompas, mas também o café da manhã e os bons-dias, tímidos namoros e grandes conflitos passionais, uma sessão do Senado ou uma reunião diplomática – tudo é teatro.

“Uma das principais funções da nossa arte é tornar conscientes esses espetáculos da vida diária onde os atores são os próprios espectadores, o palco é a plateia e a plateia, palco. Somos todos artistas: fazendo teatro, aprendemos a ver aquilo que nos salta aos olhos, mas que somos incapazes de ver de tão habituados que estamos a apenas olhar. O que nos é familiar torna-se invisível: fazer teatro, ao contrário, ilumina o palco da nossa vida quotidiana.

“Em setembro do ano passado fomos surpreendidos por uma revelação teatral: nós, que pensávamos viver num mundo seguro, apesar das guerras, genocídios, hecatombes e torturas que aconteciam, sim, mas longe de nós em países distantes e selvagens, nós vivíamos seguros com o nosso dinheiro guardado num banco respeitável ou nas mãos de um honesto corretor da Bolsa – nós fomos informados de que esse dinheiro não existia, era virtual, feia ficção de alguns economistas que não eram ficção, nem eram seguros, nem respeitáveis. Tudo não passava de mau teatro com triste enredo, onde poucos ganhavam muito e muitos perdiam tudo. Políticos dos países ricos fecharam-se em reuniões secretas e de lá saíram com soluções mágicas. Nós, vítimas das suas decisões, continuamos espectadores sentados na última fila das galerias.

Há vinte anos atrás, dirigi Fedra de Racine, no Rio de Janeiro. O cenário era pobre; no chão, peles de vaca; em volta, bambus. Antes de começar o espetáculo, dizia aos meus atores: – “Agora acabou a ficção que fazemos no dia-a-dia. Quando cruzarem esses bambus, lá no palco, nenhum de vocês tem o direito de mentir. Teatro é a Verdade Escondida”.

“Vendo o mundo além das aparências, vemos opressores e oprimidos em todas as sociedades, etnias, géneros, classes e castas, vemos o mundo injusto e cruel. Temos a obrigação de inventar outro mundo porque sabemos que outro mundo é possível. Mas cabe-nos construí-lo com as nossas mãos entrando em cena, no palco e na vida”.

“Assistam ao espetáculo que vai começar; depois, nas suas casas com os seus amigos, façam as suas peças vocês mesmos e vejam o que jamais puderam ver: aquilo que salta aos olhos. Teatro não pode ser apenas um evento – é uma forma de vida!

“Atores somos todos nós, e cidadão não é aquele que vive em sociedade: é aquele que a transforma!”

Augusto Boal, 27 Março, 2009, Dia Mundial de Teatro

Artigo publicado em Outras Palavras.


iComando Geral dos Trabalhadores (CGT) e o Pacto de Unidade e Ação (PUA, aliança intersindical), formados em 1961 [Nota do editor]

iiMorreria menos de dois meses depois, no 2 de maio [Nota do editor]

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