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Alterações climáticas: uma trajetória rígida e perigosa

O novo alerta dos cientistas do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas contrasta de forma brutal com a indiferença dos governos e grandes corporações que dominam a economia global.
"Não se pode reciclar o tempo perdido". Foto H M Cotterill/Flickr

Há duas semanas, chegou à imprensa um rascunho do que será o próximo relatório do IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas). Trata-se de um documento preliminar, mas a mensagem é clara: o risco de provocar danos severos e irreversíveis ao clima é real e é urgente a necessidade de reduzir drasticamente as emissões de gases de efeito estufa. Este alerta dos cientistas contrasta de forma brutal com a indiferença dos governos e grandes corporações que dominam a economia global.

A versão final do documento deverá ser discutida em uma conferência na sede da Onu em Nova Iorque, no dia 23 de setembro. Convocada por Ban Ki-moon, o encontro reunirá líderes de governos e do setor privado para discutir medidas concretas orientadas para reduzir as emissões em ações de curto prazo. Mas parece que muito poucos chefes de Estado e de Governo estarão presentes. Isso não é surpreendente.
 
O mundo carece atualmente de um quadro regulamentar sobre as alterações climáticas e o processo de negociações para alcançar compromissos políticos é um caos. A Cimeira de Nova Iorque é, essencialmente, uma reunião para se conversar. A COP20, em dezembro, em Lima, só poderá avançar até um projeto para um novo tratado sobre alterações climáticas. Terá que esperar até à COP21 (Paris, 2015) para ver que tipo de monstro emerge deste longo processo de compromisso e transações.
 
Os resultados do quinto relatório de avaliação do IPCC indicam que o aquecimento do sistema climático é um fenómeno indiscutível e algumas das mudanças observadas nas últimas seis décadas não têm precedente por milhares de anos. O aquecimento observado na atmosfera e oceanos; volume de gelo e a quantidade de neve caíram; o nível do mar subiu.
 
Estudos do IPCC mostram que as observações acima são correlacionadas com o aumento das concentrações de gases de efeito estufa (GEE) na atmosfera. O principal GEE é o dióxido de carbono (CO2) e vem principalmente de combustíveis fósseis e processos industriais e, em menor grau, de desmatamento e alterações no uso da terra. O inventário de GEE inclui outros gases mais potentes em sua capacidade de reter a radiação infravermelha (como o metano) e, embora seja necessário reduzir essas emissões, o principal contribuinte para a mudança climática é CO2.
 
O relatório afirma que as emissões não foram reduzidas. Há ainda indícios de que eles estão a crescer mais rápido. Alguns analistas dizem que não só estamos caminhando na direção errada como estamos a fazê-lo rapidamente.
 
Talvez a descoberta mais surpreendente do relatório esteja relacionada com as reservas de hidrocarbonetos e o seu destino final. Cerca de 80% dos combustíveis fósseis, que são conhecidos por existir em várias formas, teria de permanecer onde está para não ultrapassar o limite de um aquecimento de 2 graus Celsius (em relação à temperatura média anterior à revolução industrial). Ou seja, quatro quintos das reservas de combustíveis fósseis teriam de ficar no chão.
 
A economia mundial adotou há muitas décadas um perfil de energia que é totalmente dependente de combustíveis fósseis. Mudar o perfil associado a essa infraestrutura é um processo caro e lento. Não vai precisar apenas do desenvolvimento de fontes alternativas de energia. Também é preciso mudanças necessárias na maneira de transportar e consumir essa energia. Mas as grandes empresas do setor de energia comprometeram-se com este perfil tecnológico, e não estão preparadas para mudar isso antes de amortizar seus investimentos. As mudanças também devem ser introduzidas em uma longa lista de bens de consumo duráveis.
 
E ainda há mais. Grandes empresas do setor de energia do mundo estão a gastar biliões de dólares na exploração e extração de combustíveis fósseis. E se por um passe de mágica a decisão de deixar 80% das reservas do solo fosse adotada, essas empresas teriam de aceitar o cancelamento de milhares de milhões de dólares de ativos que são o valor dessas reservas. As ramificações de uma mudança radical na estrutura financeira dessas empresas são muito grandes e envolvem uma profunda transformação do sistema financeiro.
 
A resistência à mudança não vem apenas de uma infraestrutura rígida de produção e consumo de bens, também vem do setor financeiro. E se alguém pensa que o cancelamento de ativos é um exercício de contabilidade simples, lembrar o domínio do capital financeiro é a principal característica do atual estágio do capitalismo mundial.


Publicado no portal Sin Permiso. Tradução de Daniella Cambaúva para o portal Carta Maior.

Sobre o/a autor(a)

Economista, professor em El Colegio do México.
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