Alguns equívocos: As meias-verdades da nova rede ferroviária

19 de abril 2012 - 12:31
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Portugal e Espanha precisam de uma nova rede de bitola europeia. Contudo, o problema não é só a bitola. É necessário uma rede com a mesma sinalização, ERTMS, e eletrificação europeia. Artigo de Rui Rodrigues.

A primeira grande campanha sobre o troço ferroviário Poceirão-Caia ocorreu há meses, quando vários políticos, tanto no Parlamento como na TV, afirmavam que este troço iria ser inédito a nível mundial, pois ligaria duas pequenas localidades por uma linha de Alta Velocidade uma vez que, do lado espanhol, não existia continuidade até Madrid. Esta afirmação deixou de fazer sentido quando foram exibidas imagens dos troços em construção da futura via Badajoz-Madrid. Mais recentemente, foi dito que a ligação Sines-Badajoz, em bitola europeia, não tem continuidade em Espanha.

No dia 23 de Dezembro de 2009, na Comissão de Transportes da Assembleia da República (está registado na respetiva ata), o Governo do ex Primeiro-Ministro José Sócrates justificou a construção da Linha Sines-Badajoz, em bitola Ibérica, afirmando que só daqui a 30 anos a Espanha se iria ligar a França, em bitola europeia, para mercadorias. Esta informação foi desmentida quando o porto de Barcelona iniciou, em Dezembro de 2010, o transporte de contentores para França, Alemanha e Itália em bitola europeia, através da nova linha de Alta Velocidade Barcelona-França.

Também é usual ser publicada a ideia de que, na nova rede de bitola europeia de Alta Velocidade, só são transportadas “cargas leves” ou cargas “ligeiras”. O troço Poceirão-Caia está preparado para o transporte de mercadorias até 25 toneladas por eixo. O transporte de contentores nesta via será possível desde que se cumpra este requisito. Que se saiba, um quilo (Kg) de chumbo pesa o mesmo que um Kg de algodão.

Alguma imprensa ficou surpreendida sobre a razão pela qual a “Troika”, quando iniciou a ajuda económica a Portugal, não decidiu desde logo parar o projeto do troço Poceirão-Caia. Alguns comentadores chegaram ao ponto de afirmar que tal decisão resultava do facto dos “alemães e franceses estarem interessados na venda de material circulante a Portugal”.

Estas afirmações revelavam uma total falta de informação, uma vez que o material circulante representa uma pequena percentagem do investimento total. Além disso, neste caso, o material circulante até pode ser explorado por operadores estrangeiros, caso o nosso país pretenda reduzir os gastos. A maior parte do investimento será o custo de construção, sobretudo da plataforma de via que atinge quase 70 % do total.

Outro dado surpreendente, e que raramente é mencionado, é que o troço Poceirão-Caia beneficia de fundos comunitários, no valor de 800 milhões de Euros, para o Projeto Prioritário PP3 da linha de Alta Velocidade (AV) Lisboa-Madrid e que pertencem ao pacote financeiro 2007-2013. Estas verbas não podem ser transferidas nem para outros projetos, nem para o próximo pacote financeiro 2014-2020. Se Portugal nada construir até 2013, perderia estas verbas para projetos de outros países.

Podem circular em Espanha?

Uma das últimas informações publicadas consiste na dúvida se os comboios de mercadorias, em bitola europeia, não poderão circular em Espanha e que não há garantias que os mesmos possam percorrer a rede francesa. Até já foi escrito que vai ser necessário um acordo prévio do gestor de infraestrutura ferroviária francesa para permitir passagem aos comboios vindos da Península Ibérica (disponibilidade de ‘slots’). Quem publicou esta ideia até se esqueceu de que o termo “slot” é utilizado normalmente em aviação. A palavra “slot” corresponde a direitos de aterragem e descolagem para aviões, numa determinada faixa horária. O termo ferroviário que se deveria ter utilizado deveria ser “canais”.

É surpreendente utilizar estas ideias quando a Comissão Europeia aprovou, e já estão em execução, diversos corredores das futuras redes ferroviárias transeuropeias, financiadas pelo atual pacote financeiro 2007-2013.

Um dos corredores já aprovados é o do Atlântico, que vai ligar França-Irun-Valladolid-Palencia, que bifurca para três direções: Vilar Formoso-Aveiro que inclui o Eixo Norte-Sul de Portugal e o porto de Leixões e Galiza e Madrid por Ávila. Através da capital espanhola até Badajoz e do novo troço Poceirão-Caia será efetuada a ligação, em bitola europeia, para mercadorias e passageiros à região de Lisboa e aos portos de Setúbal e Sines.

A ligação do Norte de Portugal, ao corredor do Atlântico e à União Europeia (UE), através do troço Aveiro-Salamanca, só será possível, através do próximo pacote financeiro 2014-2020. Em 2012, ainda nem sequer existe o projeto para esta infraestrutura. Até 2014, uma das prioridades passará por apresentar à Comissão Europeia o projeto de execução sem o qual não existe o respetivo financiamento.

Este novo corredor vai permitir resolver o grave problema da diferença da bitola entre França e Espanha que provoca dois constrangimentos que condicionam fortemente o transporte ferroviário de mercadorias da Península Ibérica para o resto da Europa:

- Disparo de custos, por contentor, devido à operação de transbordo;

- Forte limitação do número de comboios que circulam entre Espanha e França por dia.

Um bom exemplo deste problema é o que ocorre na linha antiga entre Barcelona e França onde, por dia, só circulam 10 comboios devido ao tempo que se perde em cada transbordo (1 hora ou mais). Se a bitola fosse igual, seriam 280.

Por estas razões, Portugal e Espanha precisam de uma nova rede de bitola europeia. Contudo, o problema não é só a bitola. É necessário uma rede com a mesma sinalização, ERTMS, e eletrificação europeia.

Outros equívocos

A maioria dos jornalistas e economistas, em Portugal, têm o hábito de utilizar a sigla “TGV” em vez de “nova rede de bitola europeia”. Ou seja, não distinguem entre uma infraestrutura e um tipo de comboios rápidos franceses (TGV – Trains de Grand Vitesse). Era o mesmo que, em vez de se discutir a construção de uma auto-estrada para camiões e viaturas ligeiras se desviar o debate sobre uma marca de automóveis.

Outra meia verdade, que tem sido lançada, consiste em afirmar que uma linha para 250 quilómetros por hora (km/h) é muito mais barata que para 350 Km/h. Numa região plana e de baixa densidade populacional, essa diferença é muito reduzida. A distância entre Lisboa e Madrid justifica uma via preparada para Vmáx 350 Km/h, de modo a que o tempo de viagem do comboio possa retirar mercado ao avião e ao automóvel. Nesta via vão poder circular comboios de longo curso até Vmáx de 350 Km/h e o AV Regional de Vmáx de 250 Km/h, que vai ligar as estações intermédias.

Por fim, e mais importante, é a questão estratégica da energia e do disparo do preço do petróleo, que muitos ainda não assimilaram. Vários países da Europa, desde a década de oitenta, perceberam que o preço do petróleo é um grave problema para as respetivas economias. Por essa razão, neles foi feita uma aposta na ferrovia e no sector marítimo e portos de mar, porque são os modos de transporte mais económicos e eficientes.

A forma mais eficaz de verificar a informação publicada sobre esta polémica pode ser efetuada através da consulta de documentos oficiais europeus.

Artigo de Rui Rodrigues (Email: [email protected] - Site: www.maquinistas.org), publicado no jornal Público a 9 de abril de 2012