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“Regresso aos mercados”: A Irlanda e Portugal estão fora de perigo?

Não. Nenhum destes países está hoje mais para perto de sair da tutela da troika do que estava em julho passado. O barco da Eurozona faz água cada vez mais, afogando os passageiros da coberta de baixo, enquanto os da 1ª classe acabam com o champanhe. Por Yanis Varoufakis
Draghi forneceu uma fachada para ocultar o facto de que as dívidas da Irlanda e de Portugal continuam a ser insustentáveis e que a auto-infligida austeridade não serviu para nada. Foto de European Parliament

Irlanda e Portugal fizeram, recentemente, um teste aos mercados financeiros com algum sucesso. Portugal emitiu obrigações a 5 anos e a Irlanda está no processo de reconverter as suas asfixiantes promissórias de curto prazo em títulos de longo prazo, para serem vendidos ao setor privado. Além disso, a Irlanda conseguiu garantir a autorização do Conselho do BCE para reestruturar as odiosas notas promissórias que provocaram, em 2010, um aumento de 20% na sua taxa de dívida em relação ao PIB. De modo que, à primeira vista, dois dos países da Eurozona submetidos a um suposto “programa” de resgate sob a tutela do FEEF e da troika estão a regressar aos mercados.

Mas significa isto que estão fora de perigo? Por outras palavras, há alguma justificação para se dizer que estes dois países estão hoje mais para perto de sair da tutela da troika do que estavam em julho passado, antes da declaração formal do sr. Draghi de que faria tudo o que fosse necessário para salvar a zona euro? A resposta a ambas perguntas é, temo, um rotundo "não!" Para entender porquê, é útil recordar: (a) o que significa estar "fora de perigo", e (b), em que consiste o programa OMT do Sr. Draghi e como está a afetar Itália e Espanha e, através deles, Irlanda e Portugal.

Para começar, estar "fora de perigo" deveria significar que o Estado tem capacidade de se financiar sem depender do financiamento direto ou indireto de qualquer das instituições da troika. Isto é, que Dublin, Lisboa, Roma ou Madrid possam ter a sua própria política fiscal sem a supervisão direta da troika e sem depender das decisões e atuações desta para assegurar a sustentabilidade dessa política fiscal. Defenderei em seguida que nenhum dos Estados “falidos” da Eurozona (Irlanda, Portugal, Espanha e mesmo Itália) está hoje mais perto deste 'final feliz' do que estavam em julho de 2012.

Uma breve história do OMT, sua natureza e função

A recente acalmia do mercado de obrigações deve-se inteiramente ao anúncio do Sr. Draghi da criação do programa OMT (operações monetárias diretas) no passado mês de setembro. Qual era o propósito do OMT? Em poucas palavras, fazer frente à incapacidade total do fundo de resgate FEEF-MEDE (Fundo Europeu de Estabilidade Financeira-Mecanismo Europeu de Estabilidade) de resgatar a Itália e a Espanha. Depois de a Alemanha ter rejeitado qualquer sugestão de que o FEEF-MEDE pudesse pedir emprestado mais dinheiro, ou de que os ativos do BCE fossem utilizados para alavancar os fundos do FEEF-MEDE, foi evidente que, como a Espanha e a Itália estavam a ser acossadas pelos mercados financeiros que especulavam com os seus títulos, não havia maneira de que a sua dívida, que soma 3 biliões de euros, pudesse ser estabilizada. Foi nesse momento que o sr. Draghi teve de intervir, de algum modo, para tapar esse buraco e, de facto, enviar um sinal aos operadores de títulos que se especulassem mais com a dívida italiana e espanhola iam perder dinheiro.

Assim nasceu o OMT. Tratava-se de uma simples ameaça do BCE de que (se fosse necessário) compraria tanta dívida italiana e espanhola de curto prazo aos bancos italianos e espanhóis que fosse necessária para asfixiar os especuladores italianos e espanhóis. Não podendo referir-se a Itália e Espanha de forma explícita, o sr. Draghi precisou que o OMT dizia respeito aos países que conservavam pleno acesso aos mercados financeiros; por outras palavras, que não eram a Grécia, Irlanda e Portugal (e portanto só podiam ser Itália e Espanha). Esta condição matava dois pássaros com um só tiro: por um lado, deixava explícito o que queria dizer o Sr. Draghi em relação à Itália e à Espanha (que o OMT era entendido como uma medida provisória para colmatar a insuficiência de financiamento provocado pela incapacidade do FEEF-MEDE de resgatar a Itália e a Espanha) e, mais ainda, deixava uma janela aberta para inventar uma alternativa a um novo resgate oficial à Irlanda e a Portugal (uma vez que expirasse o seu primeiro empréstimo).

Os mercados responderam de imediato dando vários passos atrás. Apesar de o financiamento do OMT estar condicionado também a que Itália e Espanha ficassem sob a supervisão da troika, submetidas a um completo programa da troika, os operadores  abstiveram-se de testar até onde chegava o compromisso de Draghi por duas razões: em primeiro lugar, pelo efeito “concurso de beleza” (isto é, cada operador achava que a opinião geral entre os operadores era que, no momento, não valia a pena meter-se com o Mário) e, em segundo lugar, porque o sr. Draghi e a UE aludiram à sua disposição de considerar as políticas de austeridade aplicadas atualmente por Roma e Madrid como programas de facto da troika, pelo menos no curto prazo.

Portanto, os rendimentos das obrigações italianas e espanholas entraram em colapso, apesar da deterioração colossal dos fundamentos da economia real em ambos os países. E à medida que o valor das obrigações caía, produziu-se uma reativação das operações de todo o tipo de títulos no conjunto da zona euro, graças e com o apoio da decisão pública da sra. Merkel de excluir a possibilidade de um “Grexit”1 até novo aviso.

Irlanda

A queda universal do rendimento das obrigações foi de particular importância para o governo de Dublin. Não esqueçamos que o governo de Irlanda tem tentado desesperadamente mostrar ao povo irlandês alguma evidência empírica de que a sua estratégia de se comportar como o "prisioneiro modelo" dava os seus frutos. Que a Irlanda receberia do BCE um prémio de bom comportamento, em particular com respeito às odiadas promissórias2, e que, em breve, seria capaz de se livrar da infame etiqueta de ser um membro do “Resgatestão”, de ser também um país "vigiado", junto a estados frustrados e caídos em desgraça como a Grécia. O OMT ofereceu à Irlanda uma grande oportunidade de pôr oficialmente fim ao seu estatuto de estado frustrado, ao mesmo tempo que dava a Bruxelas, a Berlim e a Frankfurt uma oportunidade de ouro de proclamar a sua primeira vitória – ou, como explicou Karl Whelan no seu documento de 2012 sobre as notas promissórias e a sua reestruturação.“Em defesa da reestruturação dos títulos”: “Os parceiros da Irlanda têm a firme esperança de que esse país, tão louvado pela sua disposição de aplicar as políticas de austeridade, seja capaz de voltar aos mercados da dívida soberana em 2013….Uma redução do peso financeiro associado às notas promissórias seria uma maneira relativamente simples de fazê-lo”.

A lógica era simples: a crise de Irlanda não era substancialmente diferente da de Espanha. A sua dívida soberana tornou-se insustentável quando o sector imobiliário implodiu, expondo os seus bancos a uma montanha de dívidas que foram então transferidas para os ombros do Estado. Se o OMT tornou possível que a Espanha fingisse que mantinha acesso total aos mercados financeiros, por que não poderia Irlanda manobrar, com a ajuda do BCE, para se colocar na mesma situação que a Espanha, isto é, permanecer sob tutela da troika depois de finalmente, pelo menos em termos oficiais, sair do programa FEEF?

O que facilitou as coisas, no caso de Irlanda, foi o facto de que alguns gestores de fundos, Franklin Templeton entre eles, já tinham apostado muito dinheiro em que a Irlanda se converta numa Espanha do norte. Foi por este motivo que os spreads irlandeses caíram abaixo dos espanhóis já há algum tempo (visto que as compras de dívida irlandesa por fundos de risco e de pensões constituía uma percentagem considerável das obrigações em circulação na Irlanda).

De modo que, aproveitando o efeito combinado do OMT e das compras dos fundos de risco e de pensões na hora de reduzir os rendimentos das obrigações, o governo irlandês fez ao BCE uma oferta que este não poderia, em última instância, recusar: "Vamos oferecer-lhe uma esplêndida oportunidade, sem custo algum para o Banco Central Europeu, de proclamar o seu primeiro sucesso na luta para acabar com a crise. Basta que nos permitam esticar os prazos das amortizações das nossas notas promissórias, mantendo constante o valor no tempo dos pagamentos aos credores dos nossos bancos liquidados 3. Assim, o BCE pode dizer que não contribuiu para o financiamento do Estado irlandês, enquanto as nossas notas promissórias serão convertidas em obrigações de longo prazo e vendidos ao sector privado. E por que os privados irão comprá-los agora, a taxas de juros acessíveis? Porque se o fizerem, poder-se-á proclamar que a Irlanda recuperou o acesso aos mercados financeiros, e, assim, subitamente, a Irlanda torna-se perfeitamente elegível para o programa OMT: um Estado membro com pleno acesso aos mercados financeiros e um programa pré-existente ao da troika. Imediatamente, os operadores vão desistir de especular mesmo que vendamos um grande número de novas obrigações. E a cereja em cima do bolo, na perspetiva do BCE, é que o ELA (Emergency Liquidity Assistance) será muito, muito menos utilizado, permitindo ao BCE proclamar o regresso à normalidade também nesse aspeto".

O recente anúncio do BCE de dar luz verde à conversão das notas promissórias da Irlanda em obrigações de longo prazo conclui este acordo: o contribuinte irlandês continuará a arrastar enormes e insustentáveis dívidas de longo prazo contraídas por banqueiros que já desapareceram e que nunca deveriam ter sido apoiados pelo estado irlandês. Continuará a espiral recessiva, alimentada pelas políticas de austeridade. Mas o facto de a dívida soberana da Irlanda ser insustentável e de a auto-infligida austeridade não ter servido para nada ficará escondido sob a fachada do OMT. A troika continuará a ser o verdadeiro governo da Irlanda e o Estado irlandês continuará a precisar, tal como acontece desde setembro de 2010, das intervenções diretas do Banco Central Europeu para manter o seu "acesso ao mercado". A única coisa que mudou foi a retórica, que agora premeia Dublin com a vitória de Pirro de proclamar, com um pouco mais de autoconfiança, que "não é Grécia".

A triste verdade por trás do teatro de sombras

As objeções da Alemanha e em particular do Bundesbank ao OMT e ao acordo sobre os títulos irlandeses baseavam-se na habitual obsessão do “risco moral”. O exemplo destas medidas extraordinárias não poderiam alentar a Itália e a Espanha a tentar tirar proveito das declarações do sr. Draghi ou das facilidades dos seus ELAs para resgatar os seus sistemas bancários sem terem de passar pelas torturas sofridas pela Irlanda? O que permitiu superar estes “medos” foi a ideia de que o anúncio do programa OMT e a luz verde para alongar a maturidade dos títulos irlandeses dariam à troika o enorme troféu político de poder retirar a Irlanda (e talvez Portugal) da frigideira do FEEF e anunciar com fanfarras que “sofrer vale a pena”, com o regresso aos mercados financeiros de tão cumpridores estados. Um prémio adicional é que, naturalmente, muito poucos astutos observadores se darão conta de que a Irlanda e Portugal, tendo escapado da frigideira do FEEF para cair no fogo da austeridade do OMT.

Em resumo, o sr. Draghi, sem dúvida, tem tido sucesso na hora de fazer frente a uma série de dores de cabeça políticas:

· Como evitar dizer ao eleitorado alemão que a Espanha, a Irlanda, Portugal e, finalmente, a Itália vão precisar de uma gigantesca ajuda fiscal que o FEEF-MEDE não foi capaz de proporcionar?

· Como dizer a esse mesmo eleitorado, meses antes das eleições federais alemãs, que a Irlanda, a Espanha e Portugal, além da Grécia, precisarão de financiamento fiscal ad infinitum?

· Como dizer ao povo irlandês que o seu sofrimento não serviu para nada?

Todas estas perguntas têm agora uma única, breve e libertadora resposta: a Irlanda escapou do “Resgatestão” e conseguiu-se impedir que a Espanha caísse nele. Até Portugal colocou obrigações a cinco anos! Tragam o champanhe!

Mas mesmo que estourem as rolhas das garrafas de champanhe, e a explosão de alegria encha os nossos ouvidos, vale a pena manter um pé na realidade. E a realidade é particularmente difícil: não houve qualquer avanço! De facto, a crise da zona euro piora, quanto mais tranquilos parecerem os mercados de obrigações e maior for a confiança dos comentadores de que a Irlanda e Portugal estão fora de perigo. Se a resolução da crise do euro dependesse de substituir o financiamento do FEEF-MEDE pelo do BCE, sem desvincular a banca da crise da dívida e enquanto o coração da Europa cai presa de uma feroz recessão assimétrica, a crise, evidentemente, teria terminado. Infelizmente, nunca se tratou disso. E assim, o bom barco da Eurozona continua a navegar, apesar de fazer água cada vez mais, afogando os passageiros que estão na coberta de baixo, enquanto os de primeira classe, enganados por um astuto capitão, acabam com o champanhe.

Yanis Varoufakis é um economista greco-australiano de reputação científica internacional. É professor de política económica na Universidade de Atenas e conselheiro do programa económico do Syriza da Grécia. Atualmente é professor da Universidade de Texas, EUA. O seu último livro, O Minotauro Global, é para muitos críticos a melhor explicação teórico-económica da evolução do capitalismo nas últimas seis décadas.

18/02/13

Publicado no blog do autor, com o título “A Irlanda e Portugal estão fora de perigo? A enganosa acalmia da Eurozona”

Tradução de Luis Leiria para o Esquerda.net

 

1 Grexit é um neologismo que se refere à retirada da Grécia da Zona Euro e do retorno ao Dracma.

2 As garantias oferecidas em forma de títulos do governo anterior a dois bancos falidos, que implicavam pagamentos anuais do contribuinte aos banqueiros falidos e aos seus credores, eram tão cruéis e incomuns como o tributo anual que os atenienses enviavam a Creta (isto é, meninos e meninas atenienses para serem devorados pelo Minotauro).

3 Após a primeira edição deste post, Wolfgang Munchau publicou um artigo no Financial Times que questionava a minha afirmação de que o valor intertemporal dos títulos se mantinha constante. Munchau escreve: "Trata-se de financiamento fiscal na forma e no fundo. Toda a estrutura deste acordo é tão complicada que os jornais não informam todos os detalhes apropriados. Como sempre, a complicação tem um propósito. Faz-se legal o que de outro modo não o poderia ser, e daí a ofuscação”. Estou de acordo, a complexidade é uma manobra uma vez mais ao serviço do subterfúgio. A minha questão aqui baseia-se na mesma fonte que a de Wolfgang: o excelente documento de Karl Whelan a que me referi. Whelan escreve na pág. 20: "... o atual cronograma significaria que o Irish Bank Resolution Corporation (IBRC) – o “banco mau” irlandês – seria capaz de pagar as suas dívidas do ELA (provavelmente com todas as outras) em 2022. Nesse momento, o governo poderia fechar o IBRC e simplesmente cancelar os pagamentos restantes. Note-se que a quantidade total dos pagamentos de títulos neste exemplo seria de € 37 mil milhões. Os € 11 mil milhões restantes em pagamentos programados após 2022 simplesmente não se fariam”. Se temos em conta que o governo irlandês, como diz Whelan, não pagará títulos após 2022, já que então as dívidas do IBRC ao ELA estarão pagas, o valor no tempo das novas obrigações de longo prazo será equivalente ao dos atuais títulos.

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