Uma maré feminista

porJoana Mortágua

11 de março 2022 - 21:44
PARTILHAR

O sistema patriarcal e capitalista quer controlar os nossos corpos. Outras pessoas que não somos nós querem definir-nos pelas suas ideias sobre os nossos corpos. Querem decidir se temos filhos, com quem e como.

No passado dia 8 de março, as ruas de Lisboa que ligam o Chiado à Assembleia da República fizeram-se estreitas para acolher as pessoas que se juntaram aos milhares à marcha feminista. Quem lá esteve, ou mesmo quem teve oportunidade de acompanhar à distância, pode ver naquela maré feminista um exemplo: de alegria, de ativismo, de saudável convivência de agendas, experiências, corpos e identidades.

Tanta diversidade serve para nos lembrar que os caminhos da luta contra o patriarcado são muitos, marcados pelas diversas estratégias do movimento feminista ao longo do tempo. Apesar disso, as lutas feministas partilham traços fortes. Todos os avanços nos direitos de género fizeram-se contra o conservadorismo, e todos têm raízes numa causa antiga: o direito ao corpo como forma de emancipação. A luta das mulheres trabalhadoras, de cá ou emigrantes, por melhores salários e iguais aos homens só avança com essa perspetiva de autodeterminação das mulheres.

Hoje essa luta é atualizada por novas questões, muitas delas têm vindo a ser colocadas pelo movimento LGBTIA+, em particular pelo movimento trans, ou pelo movimento anti-racista. Temos de as incorporar sem perder de vista que um dos pilares mais importantes do feminismo é travar uma batalha cultural e legal pela autodeterminação plena dos nossos corpos.

É uma causa de todas nós, qualquer que seja a nossa identidade, género ou orientação sexual. Porque é uma afirmação do nosso controlo sobre a nossa própria sexualidade.

O sistema patriarcal e capitalista quer controlar os nossos corpos. Outras pessoas que não somos nós querem definir-nos pelas suas ideias sobre os nossos corpos. Querem decidir se temos filhos, com quem e como. Querem impor-nos com quem e como vivemos a nossa sexualidade.

É por isso que a propósito desta magnífica celebração em forma de marcha, gostaria de lembrar que a luta pelos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres não pertence a uma “geração de feministas” que entretanto deu aqueles direitos por conquistados. É uma luta constante contra o patriarcado.

Nela continuamos a incluir questões tão importantes como o direito ao aborto (conquistado na lei mas com estagnações e dificuldades na sua aplicação concreta); o direito à educação sexual (também previsto na lei mas muito longe no que é necessário para o combate à violência no namoro e às discriminações); o recente e importante debate sobr a violência obstétrica ou as questões da violência de género e, em particular, da violência sexual.

Quem estiver atenta à ascensão da extrema-direita e de governos ultraconservadores no mundo (e como não estar?) verá os direitos sexuais e reprodutivos serem apontados como a origem de todos os males morais que recaem sobre a família e a sociedade tradicionais. A direita radical tem um problema com liberdade, e ainda mais quando ela é exercida sobre a identidade de género e sexual de cada uma de nós.

No início da segunda década do século XXI, a vulnerabilidade destes direitos é um mau sinal, apenas contrariado pela esperança que nasce das ruas onde tanta gente levanta a bandeira do feminismo.

Artigo publicado no jornal “I” a 10 de março de 2022

Joana Mortágua
Sobre o/a autor(a)

Joana Mortágua

Deputada e dirigente do Bloco de Esquerda, licenciada em relações internacionais.
Termos relacionados: