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Sociedade de indivíduos

A substituição das relações coletivas por uma sociedade de indivíduos é o que permite hoje que o trabalho tenha menos poder face ao capital.

Há um personagem de Kerouac1que abomina de igual forma os patrões e os sindicatos, mantendo uma relação temporária e transitória com o trabalho, como que em perpétuo movimento. Este e outros personagens são a geração beatnik, geração excessiva e inconformista, que fugia do burocrático, do ordeiro, do estável, do sistémico.

Nesse sentido, podemos tambémtrazer à baila a geração hipster, opositoraao mainstream, às regras reguladoras e dominantes da sociedade. Procuravam, tanto uns como outros, e de formas diferentes, a individualidade e a autenticidade. A libertação do indivíduo face à burocracia, ao Estado eao sistema é também uma mensagem dominante dos anos 60, com destaque ao Maio de 68.

Foi uma mensagem crítica mobilizadora, posteriormente aproveitada para outros propósitos por aqueles que defenderam, 20 anos mais tarde, que a sociedade não existe, apenas existem indivíduos. Thatcher é autora material da expressão que, na mão dos conservadores e dos liberais, se tornou a arma de arremesso contra os sindicatos, contra a organização coletiva dos trabalhadores e contra o contrato de trabalho. Na ação dos conservadores e dos liberais,individualidade e libertação da burocracia significou cada vez mais precariedade e desemprego, acompanhado de mantras laudatórios da meritocracia.

Serve esta introdução apenas para relevar a ironia: de como a mensagem de liberdade individual se transformou, no mundo do trabalho, numa realidade de opressão, porque só pode haver opressão e nunca libertação, quando impera a precariedade e o desemprego.

Do coletivo organizado que era o mundo do trabalho, impôs-se uma realidade individual e quebrou-se a força reivindicativa que tinha o fatortrabalho. Da realidade do espaço organizado, que na relação de forças dava força ao trabalho, impôs-se a realidade do movimento desorganizado, que impõe ao precário esse movimento saltitante de emprego para emprego, passando por longos períodos de desemprego. 'Já não há empregos para a vida', dizem, mas arrematam de imediato, 'Odesemprego é uma oportunidade, apenas o início da escada'.

Esse dogma é perfeitamente contrariado pela realidade. Na precariedade, a movimentação é enorme, mas é essencialmente lateral2. Isto é, não há elevador social na precariedade. Muda-se de emprego e corre-se de uns para os outros, mas a maior parte dos movimentos coloca-nos no mesmo sítio que antes. É quase um exercício de ginásio, quando nos dedicamos a correr em cima da passadeira e no fim do exercício reparamos que não nos movemos um centímetro.

Ganhou-se liberdade, autenticidade, independência? Não, mas o capital ganhou na relação de forças, porque destruiu o coletivo, desvalorizou o trabalho e responsabiliza individualmente cada um pelas suas perdas. 'Estás desempregado? É porque não te esforçaste o suficiente'; 'Ganhas mal como recibo verde? É porque não tens o mérito necessário'.

A substituição das relações coletivas por uma sociedade de indivíduosé o que permite hoje que o trabalho tenha menos poder face ao capital. Diluíram-se os contratos; diluíram-se as organizações. E isso dá liberdade para contratar enfermeiros por uma bagatela, despedir centenas de formadores por e-mail, cobrar contribuições indevidas aos recibos verde e ameaçá-los de penhora, ou mesmo colocar o próprio IEFP, como tantas vezes tem acontecido, a publicitar e a recrutar para ofertas de emprego que não respeitam tabelas salariais, às vezes nem o salário mínimo.

Portugal tem hoje uma população ativa constituída maioritariamente por trabalhadores precários – nas suas várias formas – e desempregados. Isto mostra bem o que é hoje a desorganização na força de trabalho. É, mais uma vez, a falta de coletivo que permite abusos como a existência de trabalhadores temporários para postos de trabalho efetivos ou a legalização de falsos recibos verdes por via de um pagamento de 5% da TSU.

O coletivo dá força ao trabalhador como indivíduo; o individual faz o trabalhador perder força! Por isso sabemos que a sociedade de individualidades não nos serve. Dizemos, não pode haver outra coisa que não seja sociedade e indivíduos organizados coletivamente, mantendo a sua liberdade individual, mas atuando em conjunto, porque essas realidades não são incompatíveis.

É nesse sentido que os sindicatos devem empenhar-se em responder às novas realidades do mundo do trabalho e incorporar as várias realidades precárias, ao mesmo tempo que os próprios trabalhadores precários procuram pontos de união e lutas comuns entre si, abrindo-se a novas formas de organização que quebram com a lógica do individual. Serão alguns dos desafios para 2013!


1No romance de Jack Kerouac, Pela Estrada Fora, publicado em Portugal pela Relógio D'Água Editores

2Ver Arthur, M.B.; Inkson, K.; Pringle, J.K. (1999). The New Carreers – individual action and economic change. London: SAGE Publications

Sobre o/a autor(a)

Doutorando na Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto e investigador do trabalho através das plataformas digitais. Dirigente do Bloco de Esquerda
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