A Política e a arte da estratégia

porAdelino Fortunato

24 de abril 2024 - 12:29
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Sem perspetiva histórica, sem projeções de futuro a política degenera no simples cálculo administrativo e no jogo das ambições. É o colapso do pensamento estratégico, da articulação de vontades e da dimensão ética no combate às injustiças.

“O colapso pós-moderno do horizonte histórico, a retração do tempo longo em torno de um presente sem passado nem futuro, contribuem inelutavelmente para a crise da razão estratégica, isto é, da política, que não é nem uma ciência da administração nem uma ´tecnologia das instituições´, mas uma arte de conjunturas propícias e da decisão. Por isso deve se colocar ´exatamente do ponto de vista dos atores´.”

(in Daniel Bensaid, Elogio da Política Profana como Arte Estratégica)

Vivemos uma época em que a atenção de cada observador se esgota no detalhe de cada instante, dominada pela febre do zapping, pela inconstância das filiações ou dos envolvimentos, das revoltas esporádicas que dispensam qualquer perspetiva estratégica. O que conta é o que é líquido em oposição ao sólido, a miniatura em vez da referência à totalidade, a renúncia às grandes narrativas em proveito do detalhe superficial. Na democracia do mercado, que reproduz os tiques e o espírito da economia de mercado, os atores políticos tornam-se ´pessoas´ sem conteúdo qualitativo, são cotados na bolsa dos inquéritos, a comunicação prevalece sobre a informação, o como dizer sobre o como agir. A democracia afoga-se no permanente plebiscito das sondagens, na crueza dos números e a luta de classes dissolve-se no turbilhão da simplificação populista. É o grau zero da política como estratégia.

O resultado mais evidente deste modelo é a usura e o desgaste rápido da mensagem política, muito escravizada pela busca permanente da novidade no formato, mesmo que acessória ou enganadora. As diferenças entre as várias forças políticas são, por vezes, difíceis de encontrar e chegam a esbater a tradicional distinção entre esquerda e direita. A única marca que sobressai é o comportamento da extrema-direita, levando às últimas consequências o aproveitamento das condições fornecidas pela “sociedade do espetáculo” para propagandear o que de pior a direita é capaz de produzir como alternativa baseada no discurso autoritário. A esquerda, por sua vez, não foi capaz de fugir a esta armadilha e está, muitas vezes, a jogar no terreno e com as armas do adversário, o que é insustentável no longo prazo por avolumar os riscos de dissolução.

Onde isso se tornou mais visível foi na forma de lidar com alguns dos valores fundamentais e constituintes da identidade da esquerda, nomeadamente com o projeto de uma sociedade socialista. Depois das malfadadas experiências do “socialismo real” que, em nome da luta pelo fim da exploração dos povos, acabaram por construir experiências de opressão mais ou tão intoleráveis como as que pretendiam erradicar, ou das políticas neoliberais adotadas pelos partidos social-democratas (o social liberalismo) que ajudaram a aprofundar as desigualdades sociais e a instabilizar as condições de vida de grande parte da população mundial, a referência ao socialismo parece ter-se tornado tóxica.

Por isto, os novos agrupamentos da esquerda evitam referir-se explicitamente ao socialismo, seja do ponto vista dos seus elementos identificadores, seja mesmo do ponto de vista programático, preferindo apenas dar respostas às situações de emergência social. Porém, este é um falso problema, porque a questão a resolver não é o socialismo como slogan, mas sim o conteúdo ou os detalhes de um novo projeto de sociedade socialista tornado mais urgente que nunca pelos diferentes dilemas que nos atormentam. A Inquisição e outras perseguições religiosas, desenvolvidas ao longo de séculos de história em nome de ideais redentores, não acabaram com o papel e a força de arrastamento do cristianismo nos dias de hoje. O mesmo poderá acontecer com a ideia de socialismo se este for capaz de fazer os balanços críticos que se impõem e de se renovar.

Uma coisa parece certa, o socialismo não será nunca o resultado inevitável da marcha da humanidade ou da evolução das leis da História. Aquilo de que falamos é de atos deliberados, de políticas que aproveitam as conjunturas mais propícias para concretizar intenções sempre recheadas de incerteza e sujeitas ao contratempo. A História não aponta para evoluções lineares ou para qualquer determinismo, está sempre confrontada com a contingência, com alternativas e com dilemas sem desfecho previamente definido. E nesse processo teremos sempre de envolver e mobilizar quem se sente explorado ou oprimido nas sociedades em que vivemos, sem exceções ou tutelas. Sem este horizonte estratégico que é oferecido pelo projeto de sociedade socialista, a esquerda está condenada ao tacticismo, ao ziguezague, senão mesmo aos riscos de dissolução. Sem perspetiva histórica, sem projeções de futuro a política degenera no simples cálculo administrativo e no jogo das ambições. É o colapso do pensamento estratégico, da articulação de vontades e da dimensão ética no combate às injustiças.

Artigo publicado em “Raio de Luz” do mês de abril de 2024

Adelino Fortunato
Sobre o/a autor(a)

Adelino Fortunato

Economista e professor universitário. Dirigente do Bloco de Esquerda.
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