Piratas, gravatas e bravatas

porAlice Brito

07 de setembro 2011 - 0:04
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É preciso que a esquerda saiba o que o ministro, com o seu paleio de filete congelado, e a malta circundante não sabem. Não sabem que as utopias não são bolas de sabão.

Os piratas eram tipos corajosos. Aproximavam-se dos barcos que iam pilhar, às vezes a coberto das sombras da noite e outras em pleno dia com tiros de canhão. Eram ginasticados e trepavam pelos mastros, saltando depois em acrobacias espectaculares para os navios, alvos do ataque, retirando-lhes com ágil proficiência o miolo do porão. Chupavam o osso até ao tutano e depois desapareciam afundando as naus que haviam acabado de saquear.

Para tudo na vida é preciso arte.

Estes piratas de Hollywood ostentavam uma crueldade quase simpática porque romanesca, parecendo corajosos, naqueles pulos fáceis, naquelas cenas macacas que eram a fingir.

Esta pirataria neoliberal é bem diferente. Não finge. Quando ataca é mesmo a sério.

Não têm o olhar limpo dos piratas da tela. O seu olhar é geométrico e electrónico. Usam uma calculadora no olhar.

Os piratas dos filmes eram piratas mais ou menos desclassificados. Estes, pelo contrário, frequentaram as melhores faculdades de pirataria. São doutorados nesta matéria. São piratas que usam gravata.

Lá para as bandas do Ministério da Agricultura, há agora quem ostente um pescoço carente. A dispensa e correlativa despromoção da gravata podem acontecer. Assim se combate a crise. Contudo, é um enorme sacrifício. Aquele pessoal é feito daquela substância que sem gravata respira mal. A gravata é uma espécie de bengala estética e estóica. A pescoceira desguarnecida sente-se desnudada. Enfim, o governo deve dar o exemplo. Não havemos de ser só nós os convocados à renúncia.

O governo. O palco organizado para o negócio, com bastidores íntimos e poderosos. Com relva. Ou relvas várias. Um palco onde se nomeiam artistas para outros palcos. Artistas com muito faro para o compromisso, o protocolo negocial, o trato e o ajuste. Rapaziada que pressente o comércio, a melhor área a investir ou a desinvestir, como um bicho tem a premonição da tempestade. A bicharada fica ansiosa, encolhe-se, procura abrigo face à trovoada. A rapaziada à direita sente agora a mesma ansiedade mas em sentido inverso. Distende-se, sai da toca, aproxima-se do cargo, cerca o negócio, notifica tentáculos, cobra favores, cheira, torna a cheirar, adivinha, convoca amizades, enfim, rodopia em dança sagrada, como os índios dos westerns antes dos ataques.

Nesses bastidores, por detrás das cortinas, até se passeiam James Bonds, sem o glamour fílmico, físico e sedutor daquele personagem. Estes, os Bonds lusitanos, são mais para o lado do metediço, para a banda da carraça.

Suspeita-se que têm relações negociais com as grandes empresas, a quem emprestam informações privilegiadas, informações superiores e preciosas que abrem portas e escancaram janelas, construindo teias, tecendo estratégias. Negócios grandalhões, colossais, gigantes.

Entre pares.

Os pares encontram-se sentadinhos nos conselhos de administração na parte da manhã. Na parte da tarde dão um saltinho até à loja do governo onde compram e vendem mercadorias, mercados, e até bancos, passando depois pela Assembleia da República para tomar café. À noite, fazem serão nos grandes escritórios de advogados prósperos, grandes fábricas preparatórias de legislação, de defesa e ataque. Uma espécie de jogo da batalha naval que até mete submarinos. Daí são lançados os tiros ao porta-aviões da nossa vida.

São serenos torturadores do nosso dia a dia.

Seco que nem um bacalhau, Cavaco continua o seu caminho do lugar comum.

Somos um país atlântico. Atlanticamente amargo e cada vez mais atlanticamente inabitável. Este atlântico sofrimento é-nos dado por sucessivas ondas de governação, que vão e vêm, que aparecem e abalam, trazendo sempre governos prazenteiros e leais à chegada e pesados e malditos à partida. Temos, pois, um oceano de amargura a circunscrever-nos, um mar de ansiedade a bloquear-nos.

Ontem foram os transportes. Depois o aumento da luz. Amanhã as privatizações. O IVA. O raio que os parta. Sempre pelos melhores motivos. Medidas bruscas há muito planeadas, comunicadas por um ministro sonso. Parece que não parte um prato. É um teórico, com muito quilo de página estudada.

Para a teoria, a decência é completamente irrelevante. Não tem nada a ver uma coisa com a outra. Pode-se vasculhar nos milhares de páginas teóricas do neoliberalismo, esquadrinhar cada parágrafo, ver à lupa cada palavra ou mesmo letrinha, e nada. Nadinha. Aí não há qualquer hipótese ou resquício de decência.

O ministro teórico vem para ali falar ao pessoal à frente das câmaras, patati, patatá, e o défice e a troika, e os mercados e as agências. Sempre no mesmo tom cadenciado e enfadonho. Sem ponta de sal. Chato. Melga, mesmo. Ao pé dele, até parece que Cavaco, um orador medíocre e irrisório, é uma estrela do nosso Coliseu político. O ministro não ladra, não se inflama, mas morde e queima. Como um veneno. É um ministro pacatamente arruaceiro. É o ministro que há-de ficar como um dos principais culpados quando isto tudo descambar de um dia para o outro. É o ministro da impostura e dos impostos. Manhoso, é daquele material que não é dado à bravata, isto é, à bazófia. As bravatas, zaragatas e tumultos, ficam para os outros ministros e ex-ministros. Estes, quando chamados a opinar sobre a existência de um imposto sobre os ricos, contorcem-se de indignação, têm uma espécie de urticária verbal, agastam-se, esperneiam, excedem-se, cospem, babam-se de revolta, num espectáculo doloroso, tristíssimo, tão boçal que até os mais papalvos de nós dizem, irra que é de mais.

É melhor ficar por aqui. Os textos às vezes não têm pachorra para a descrição de tanta aldrabice e abrem as portas ao vernáculo e ao português na vertente vicentina. Podem ficar pesados. Adiante.

O ministro das finanças recebe instruções. Cumpre instruções. Escreve também algumas linhas pelo seu próprio punho. De qualquer modo, não deixa de ser um ministro em segunda mão. Tal como este governo. Também é um governo em segunda mão. Até parece que fala alemão. Para rimar.

Maus fígados. É preciso que a esquerda tenha maus fígados. Uma bílis corrosiva é fundamental.

É preciso que os caçadores dos nossos dias passem a ser o alvo da nossa caça.

É preciso a sapiência dos animais. Sapiência intuição. Como as fêmeas que se observam à distância, a tentar descortinar qual a fibra uma da outra. É assim que a esquerda se deve comportar com a direita. Deve medi-la, pressentir-lhe o ataque, avançar com força, impor o seu poder. Que é muito, porque vai de encontro aos anseios da maioria. De nós. De todos nós.

É preciso que a esquerda saiba o que o ministro, com o seu paleio de filete congelado, e a malta circundante não sabem. Não sabem que as utopias não são bolas de sabão. Das bolas de sabão só têm a beleza e o brilho. Isso queriam eles. Que fossem mera ilusão. Que fossem um instante. Não são.

O tempo nunca anda para trás. É para a frente que vai.

Alice Brito
Sobre o/a autor(a)

Alice Brito

Advogada, dirigente do Bloco de Esquerda. Escreve com a grafia anterior ao acordo ortográfico de 1990
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