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Pacote florestal não protege os pequenos produtores

Que coerência existe numa política de contenção da expansão do eucalipto se ao mesmo tempo se abre uma generosa linha de apoio financeiro à indústria da celulose?

Terminou ontem o período de debate público do pacote florestal apresentado pelo Governo.

A importância da floresta não decorre apenas da sua muito significativa dimensão em área, mas também da sua relevância ambiental, económica e social.

O confronto com as realidades adversas da nossa floresta não pode dar origem a uma qualquer incapacidade para transformar o quadro a que se assiste - um quadro de progressiva degradação.

As vagas de incêndios que têm assolado o país, com fogos de dimensão crescente, em área e tempo, têm levado a uma resposta imediatista, concentrada no combate direto aos fogos florestais, em detrimento da prevenção, do ordenamento e da gestão da floresta.

A aprovação do Decreto-Lei 96/2013 (Regime Jurídico das Ações de Arborização e Rearborização – RJAAR), no Governo anterior, veio agravar as condições para a expansão do risco na floresta, através da chamada “liberalização da plantação do eucalipto”.

Consequentemente, houve um aumento da área de eucaliptal no território, agravando assim o risco potencial, sendo esta uma situação que contraria, de forma evidente, o sentido da Lei de Bases da Política Florestal.

Uma fotografia da floresta, a negro, com o PSD e o CDS em grande plano.

As razões pelas quais - ao fim de 20 anos de vigência de uma Lei de Bases da Política Florestal - a situação na floresta portuguesa permanece próxima do caótico devem ser encontradas no desinteresse pelo ordenamento e pela gestão florestais e na preferência por uma liberalização que conduz a uma opção cada vez mais única, centrada no eucalipto.

O Decreto-lei 124/2006, que institui o sistema nacional de proteção e prevenção da floresta contra incêndios, nunca teve condições objetivas para ser cabalmente aplicado. Por exemplo, nunca foi concretizada a exigência das ações de arborização e rearborização florestal não poderem dar origem a uma mancha contínua da mesma espécie florestal superior a 50 hectares. Confrontados com a realidade, sabemos hoje --- 11 anos depois da promulgação do “124” --- continua a não ser essa a situação da floresta no território continental.

Nas propostas do pacote florestal apresentado pelo Governo, a anunciada proibição de aumento da área de eucalipto não tem uma correspondência legislativa que assegure esse objetivo. Afinal, que instrumentos é que passam a existir para impor com eficácia que as manchas florestais contínuas da mesma espécie não ultrapassem os 50 hectares? Que medidas são apresentadas para uma limitação na plantação de espécies de elevada inflamabilidade e que medidas estão previstas para um apoio efetivo e eficaz à plantação de espécies autóctones? Que coerência existe numa política de contenção da expansão do eucalipto se ao mesmo tempo se abre uma generosa linha de apoio financeiro à indústria da celulose, para apoio na plantação do eucalipto, na ordem dos 18 milhões de euros?

A questão essencial na floresta é a capacidade de organização dos pequenos produtores florestais - que são a estrutura principal da nossa floresta - de modo a promover a sua gestão profissional e rentável.

A proposta que o Governo adianta das Sociedades de Gestão Florestal, em vez de criar mecanismos que garantam esta organização dos pequenos produtores, conferindo-lhe capacidade de decisão, abre as portas à intervenção da grande produção dominada pela indústria da celulose e a fundos financeiros que olharão para a floresta apenas com uma perspetiva de dominação sobre a pequena propriedade, com a agravante de, ainda por cima, lhes atribuir benefícios fiscais.

As medidas propostas pelo governo que preveem as sociedades de gestão florestal não respondem às necessidades da floresta. Sobretudo onde predomina a pequena propriedade, virão a contribuir para uma concentração das propriedades através de sociedades privadas, pelo “confisco” de pequenas explorações, quer pelo apelo à sua venda com isenções de IMT e redução de IRS, quer pelo mecanismo que prevê para aquilo que denomina de “terras sem dono”.  Assim, como não nos parece bem a isenção ou redução de IRC.

Esta é uma política que contraria a realidade fundiária da nossa floresta, não protege os pequenos produtores e privilegia um produtivismo alheado das questões ambientais e de defesa da floresta autóctone.

O caminho tem que ser o inverso. É o do ordenamento e da gestão da floresta que garanta aos pequenos produtores uma intervenção de acordo com os seus interesses. É o da promoção de um preço justo pela madeira, que combata o monopólio que atualmente é exercido pela indústria ligada ao eucalipto, que estranhamente, ou talvez não, mantém preços idênticos aos praticados há uma década atrás.

É acertada a proposta de criação do Balcão Único para o cadastro, que articule as diversas plataformas já existentes. Mas,  exigir aos pequenos produtores uma complexa e inatingível operação de georreferenciação rigorosa das extremas das milhões de parcelas existentes no país, resultará num fracasso, como aliás há muito tem sido demonstrado por experiências anteriores. Será, além disso, um encargo insuportável para os pequenos produtores, além de criar condições para acentuar a conflitualidade entre vizinhos, que consequentemente terá de ser dirimida na justiça, com arrastamento de processos e, na verdade, perda de tempo e recursos para todos.

Esta situação é inadmissível e tem que ter uma solução expedita, de acordo com os objetivos do Estado que devem ser uma identificação genérica das propriedades, e não uma delimitação exaustiva que obstaculizará ao objetivo do estabelecimento de um cadastro simplificado ---- um cadastro que, a curto prazo, se constituirá como um instrumento essencial para uma política de ordenamento e gestão florestal.

Não estamos de acordo com o conceito de terras sem dono conhecido. Este conceito só poderá conduzir a um processo de expropriação administrativa, que nem sequer tem cobertura constitucional, e que conduzirá à concentração da propriedade, em benefício dos que já acumulam áreas importantes, e respetivos rendimentos.

O que existe de facto é o problema das terras sem uso. A solução é a criação de um banco de terras que proceda à gestão dessas parcelas, podendo até utilizar a figura do arrendamento compulsivo para aí as integrar, devolvendo-as, portanto, à sua capacidade de produção, sem colocar em causa a titularidade e respeitando os direitos dos pequenos proprietários.

O Bloco de Esquerda defende um caminho exigente de intervenção pública na floresta, orientada pela Lei de Bases da Política Florestal, assente em medidas de regulação do ordenamento da floresta que obriguem entidades públicas e privadas. Que promovam as espécies autóctones e diversifiquem o mosaico rural, condicionem a expansão de invasoras e exóticas. Que assentem no reforço da organização dos produtores, em especial no minifúndio florestal, por forma a conferir racionalidade económica e elevados critérios ambientais à floresta. Que pressupõe medidas de prevenção estrutural contra fogos florestais, alterando o paradigma que concentra recursos no combate direto.

É necessário afirmar um novo conceito do modo de cultivar a floresta, defendendo o desenvolvimento sustentável dos espaços florestais e os sistemas naturais associados. É preciso reconhecer o papel dos municípios no ordenamento do território, garantir a utilização social da floresta e melhorar o rendimento e a sua distribuição mais equilibrada.

A cada vez maior perceção sobre os efeitos das alterações climáticas, tornam esta opção incontornável e inadiável.


Intervenção na Assembleia da República, 1/2/2017

 

Sobre o/a autor(a)

Engenheiro técnico de comunicações. Dirigente do Bloco de Esquerda
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