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País inclinado

António Mendonça insinuou que o baixo número de utilizadores da Linha do Tua não justifica a sua manutenção. O ministro das Obras Públicas não tem só falta de jeito: pensa mesmo assim.

“Quase mais vale dar um carro a cada um por ano, incluindo o combustível, que ficava mais barato”. Foi assim que, numa passagem pelo parlamento no final da semana passada, António Mendonça se referiu Linha do Tua, insinuando que o baixo número de utilizadores não justifica a sua manutenção. O ministro das Obras Públicas não tem só falta de jeito: pensa mesmo assim.

E está, infelizmente, longe de ser o único. Basta notar as declarações do secretário de Estado dos Transportes, Carlos Correia da Fonseca, quando tentava vir em defesa da gaffe do ministro: “ninguém está a abandonar as populações, as populações é que têm vindo a abandonar o interior”. Ou seja, a culpa é das pessoas: elas é que não aguentam.

Estes aparentes deslizes na comunicação revelam um trágico primado de critérios economicistas nas decisões fundamentais que influenciam as vidas e os territórios no interior do país. Assim se decidem, por exemplo, encerrar escolas e centros de saúde ou concentrar os serviços administrativos fundamentais – as pessoas não cabem na escala económica definida com critérios que sistematicamente as desprezam. É também assim que, por exemplo, se planeia a privatização dos CTT, que, além de ruinosa, irá isolar ainda mais todas as pessoas que não vivam em locais que não obedeçam às leis do negócio que se vai oferecer.

Por todas as razões, a mobilidade é hoje um factor crítico para quem vive longe dos centros urbanos do litoral. O desinvestimento nos transportes colectivos pesa decisivamente para quem tem tudo tão longe da sua vida. A distância ao emprego, aos serviços públicos ou à cultura só pode ser vencida pelo transporte individual – o que, além de errado e insustentável, é uma forma de selecção nas zonas mais deprimidas, fortemente marcadas pelo desemprego, pela pobreza e pelo envelhecimento.

Pode António Mendonça fazer as alegorias que entender, insultando as populações que defendem o que ainda não lhes tiraram. Mas é fácil perceber que as contas do senhor ministro são outras: nos planos do Governo, o direito à mobilidade e à preservação da natureza e do património será afundado pela construção duma barragem, que, aliás, serve bem mais as aspirações da EDP do que contribui para resolver os problemas energéticos do país.

Décadas de políticas irresponsáveis não ensinaram nada a este Governo. Agrava-se a insensibilidade que, em nome duma suposta “eficiência”, destrói as condições de vida em vastas parcelas do território. Mas, além de corresponder a um insuportável desprezo pelas pessoas que – por determinação, resignação ou falta de condições – ainda não migraram dos territórios excluídos das políticas e dos investimentos, esta fria lógica economicista custa e custará muito caro. Um país inclinado é irracional e torna inevitável apuros futuros ainda mais graves. Mas disso não querem tratar estes governos de circunstância, sempre a navegar à vista, agarrados às contas de merceeiro que justificam todos os erros.

Sobre o/a autor(a)

Ativista da Associação de Combate à Precariedade – Precários Inflexíveis
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