O que é tradição na educação?

porJoana Mortágua

06 de novembro 2022 - 11:16
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Infelizmente instalou-se uma trágica tradição em Portugal: achar que a Escola Pública avança deixando os professores para trás.

Esta quarta-feira os professores fizeram greve. Uma greve participada, convocada por todos os sindicatos da área da educação, incluindo a FNE (a Federação Nacional de Educadores que pertence à UGT, a central sindical subscritora do acordo de rendimentos promovido pelo Governo) e com um nível de adesão que levou ao encerramento de muitas escolas, apesar da precariedade que grassa no sistema de ensino.

Apesar da sua expressão, o ministro da Educação limitou-se a dizer que a greve, nesta altura, já é “tradição”. Não é mentira que o período do Orçamento do Estado concentra a energia reivindicativa dos vários setores sociais, mas creio que as palavras de João Costa têm de ser lidas além da evidência do calendário.

O que faz os professores – e restantes profissionais de educação – saírem à rua não é a “habitual” falta do que fazer em novembro, nem a “ambição de ir mais longe” perante um “bom orçamento”, como diz o ministro, mas a persistência de problemas para os quais não veem solução à vista.

Já nem falo da evaporação de 223,7 milhões de euros de um orçamento que se mantém muito abaixo daquilo que a OCDE diz que devíamos investir em educação; nem da queixa da Comissão Europeia (veja-se lá) sobre os baixos salários dos professores contratados pela qual Portugal se arrisca a um processo no Tribunal de Justiça da União Europeia.

Refiro-me ao que já todos sabem: os baixos salários, a dificuldade em progredir na carreira, a obrigação de mudar de casa e de concelho todos os anos sem ganhar mais um cêntimo por isso (e isto aplica-se tanto a professores como a técnicos especializados), o burnout.

“Já é tempo de ser tempo dos professores”, têm afirmado os docentes em luta. E quem os poderá desmentir? Ao longo das últimas décadas já foi tempo de austeridade, tempo de PPPs, tempo de submarinos, tempo de banqueiros, tempo de vistos gold, tempo de residentes estrangeiros não habituais, tempo da SONAE e da Jerónimo Martins, tempo da GALP…

Por que razão não haverá de chegar o tempo dos professores?

Infelizmente instalou-se uma trágica tradição em Portugal: achar que a Escola Pública avança deixando os professores para trás.

Ironicamente, os professores podem ser acusados de ter contribuído para esta convicção: durante as últimas décadas foram alvo de várias humilhações (nunca esquecer o passado do PS) e traições (nunca esquecer o passado do PSD), viram a sua carreira ser roubada, a precariedade a crescer, os salários a perder a corrida com o custo de vida. Viram as suas funções aumentar, assim como a burocracia e as deslocações mais permanentes. Ainda assim, os indicadores de sucesso escolar cresceram e Portugal destacou-se pela qualidade da educação pública – a conclusão é que os professores se esforçaram muito para além do reconhecimento e valorização que merecem e não tiveram.

O ministro da Educação sabe que o Orçamento para 2023 não resolve a maioria destes problemas. Sabe que faltam professores à Escola Pública e que a educação depende de docentes cansados e mal pagos. Isso sim, tornou-se numa tradição. Até quebrar com ela, João Costa não devia inventar outras.

Artigo publicado no jornal “I” a 3 de novembro de 2022

Joana Mortágua
Sobre o/a autor(a)

Joana Mortágua

Deputada e dirigente do Bloco de Esquerda, licenciada em relações internacionais.
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