O IUC e as óbvias desigualdades sociais

porMaria Luísa Cabral

31 de outubro 2023 - 14:53
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A inclusão do IUC no Orçamento de Estado 24 parece o fim das nossas vidas. Será?

A discussão à volta dos novos valores do IUC parece ter acordado uma fera adormecida. Chegou-se ao absurdo de referir que as “famílias mais pobres” não podem pagar o aumento do IUC. Mas quais “famílias mais pobres”?! As famílias realmente mais pobres não pagarão IUC nenhum pela simples razão de que não têm automóvel. Como é que uma “família mais pobre” tem automóvel? Blasfémia, um termo hoje muito recorrente. É que, de facto, nós não estamos muito seguros do que é uma “família mais pobre”. É como a história da classe média, mas afinal onde começa e acaba a classe média? Há aqui pano para todas as mangas e feitios. Tudo tem a ver com o rendimento mensal respectivo (salário ou reforma), quanto é que uma família tem de auferir para não ser considerada mais pobre? Claro, tudo proporcional ao número de elementos dessa mesma família. Certamente que até ao nível de salário mínimo nacional, uma família é inquestionavelmente mais pobre. Mas desse nível mesmo assim tão baixo até sair do grupo das “famílias mais pobres” ainda vai uma enorme distância. Num ou noutro nível, não creio que possamos generalizar e dizer que essas pessoas não podem pagar mais IUC porque, muito plausivelmente, não têm carro. Portanto, parece incorrecto usar-se o argumento “não concordamos com o aumento do IUC porque as famílias mais pobres” não podem pagar. Um argumento com laivos populistas.

Por outro lado, é verdadíssima que muitas famílias da classe média, recorrendo a uma terminologia corrente nada científica, têm carro e vêem-se em papos de aranha para o conservar. Mantêm-no in extremis, como uma ferramenta para o trabalho, para as deslocações para o trabalho, para prosseguirem com o malabarismo entre obrigações profissionais e familiares. Um permanente quebra-cabeças, sempre a imaginar como será se o carro falhar. Bom, para estas pagar um aumento do IUC já começa a ser problemático. Vale a pena lembrar que não são os 2 € /mês do IUC, tudo o mais fosse pacífico e estivesse estabilizado, ninguém se preocuparia. Mas não; são os η€ a mais para o aumento da renda, ou da prestação da casa, para a alimentação ou para o material escolar ou para o vestuário ou para mais aquelas botas que a chuva inclemente exige… mais os muitos η€ que o aumento galopante do custo de vida faz gastar dia após dia e que depois da segunda metade do mês se torna doloroso. É a soma destes euros todos que torna o aumento do IUC tão absurdo. Com a agravante que irá aumentando por alguns anos. Embora o Governo tenha vindo hoje tentar sossegar dizendo que os 25€ se manterão…como acreditar? Não há como acreditar! Não me custa chamar-lhe saque.

As pessoas têm um carro com mais de 16 anos? Ora, não me parece que daí se possa inferir que o parque automóvel está a cair aos bocados. Não sei o que os vendedores de carros clamam, mas a cair aos bocados estava aqui há uns anos atrás, a renovação foi óbvia. Bom, para aquelas pessoas que só se satisfazem com automóveis topo de gama (tipo com retrovisores aquecidos), se calhar sim, é preciso trocar de carro a intervalos curtos. Para que não restem dúvidas, eu tenho carro sim, de 2006 mas continua um grande carro. Podem aumentar o IUC, não vou trocar de carro; claro que me irrita imenso a história do IUC mas se o meu carro andou apenas 100 mil quilómetros porque hei-de trocar? E sendo eu classe média, vivendo da minha reforma, alguém me pode explicar como é que eu o trocava mesmo se quisesse?

Foi anunciado que o aumento do IUC tem objectivos ambientalistas, quem quiser que acredite. Talvez não seja exclusivamente pela idade do automóvel que o IUC deva aumentar, deve haver razões de ordem técnica (por exemplo, as emissões de carbono) para determinar o dito aumento. E essas razões técnicas bem podiam ser definidas e depois controladas (medidas) pela inspecção anual a que os carros têm de ser submetidos. Se o debate no Parlamento não leva à exclusão da proposta do Governo (e não levará dada a maioria parlamentrar que tudo aguenta) ao menos que possa ser alterada no sentido de manifestar uma verdadeira preocupação ambientalista. Quem mais polui, mais paga. Se, por outro lado, se pretende reduzir a intensidade da circulação automóvel, vamos então lá melhorar os horários dos transportes públicos, vamos lutar pelo aumento dos transportes públicos eléctricos e pela ferrovia, vamos exigir a construção de grandes áreas de parqueamento à entrada das cidades, vamos taxar quem teima em pavonear-se nas últimas viaturas adquiridas. Introduzir um poucachinho de justiça vai doer, sim, haverá outra forma?

É verdade que esta lógica pode não livrar aquelas famílias que vivem em exercício de equilíbrio financeiro permanente mas reduzirá o número dos afectados por uma determinação cega como a que agora se apronta. Podem estar-me a escapar argumentos muito significativos, os meus são mais uma achega a partir do meu dia-a-dia. Afastei propositadamente desta questão as “famílias mais pobres” porque para estas não é o IUC que importa já que não se aplica. Os verdadeiros problemas são de outro calibre e nós, classe média, ainda não encontrámos resposta.

Maria Luísa Cabral
Sobre o/a autor(a)

Maria Luísa Cabral

Bibliotecária aposentada. Activista do Bloco de Esquerda. Escreve com a grafia anterior ao acordo ortográfico de 1990
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