O Governo e o Sara Ocidental – um caso de incoerência

porJosé Manuel Pureza

31 de maio 2023 - 13:53
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O apoio do Governo português ao plano marroquino, como “proposta realista, séria e credível”, sem mencionar a autodeterminação do povo sarauí, é um gesto de abdicação e profunda incoerência.

As similitudes entre os casos de Timor-Leste e do Sara Ocidental estão há muito estabelecidas. Dois territórios não autónomos, cujo processo de autodeterminação foi interrompido, em ambos os casos, por força da ocupação perpetrada por Estados com aliados poderosos no xadrez político mundial. Apesar desta proximidade, Timor-Leste e Sara Ocidental distinguem-se num aspeto fundamental: enquanto a potência administrante do Sara (Espanha) assistiu passivamente à ocupação, a potência administrante de Timor-Leste (Portugal) assumiu a responsabilidade de defender, sem transigências, o direito à autodeterminação do povo daquele território.

Assim, é também por uma razão de coerência com o que fez relativamente a Timor que se espera que o Governo português tenha para com o Sara Ocidental uma posição que exprima a mesma exigência de cumprimento do Direito Internacional concretizado no direito à autodeterminação do povo sarauí. É isso que decorre da Carta das Nações Unidas e de sucessivas resoluções do Conselho de Segurança. A mais recente dessas resoluções, de outubro de 2022, “exorta as partes a que retomem as negociações sob os auspícios do secretário-geral, sem condições prévias e de boa-fé (…) com vista a conseguir uma solução política justa, duradoura e mutuamente aceitável que permita a autodeterminação do povo do Sara Ocidental no quadro das disposições conformes aos princípios e propósitos enunciados na Carta das Nações Unidas”.

Causa, por isso, a maior perplexidade que na Declaração Conjunta da recente Reunião de Alto Nível Marrocos-Portugal, realizada em 12 de maio, conste a afirmação de que “Portugal reiterou o seu apoio à iniciativa marroquina de autonomia, apresentada em 2007, enquanto proposta realista, séria e credível, com vista a uma solução acordada no quadro das Nações Unidas”.

O plano de autonomia especial do Sara apresentado por Marrocos faz-nos regressar a Timor-Leste. Também o ocupante indonésio apresentou, em junho de 1998, um estatuto de autonomia especial para Timor. Na altura, Portugal e a resistência timorense tornaram claro que tal estatuto nunca poderia prejudicar o exercício do direito de autodeterminação daquele povo. Foi, aliás, essa a pergunta do referendo de 1999: “Aceita ou rejeita a proposta de autonomia especial ao Timor-Leste dentro do estado unitário da República da Indonésia?” O resultado foi o que é conhecido: rejeição esmagadora da autonomia especial e conquista da independência de Timor-Leste.

Que o Governo português aceite adjetivar o plano marroquino de autonomia especial do Sara – bem mais recuado que o proposto pelo presidente indonésio Habibie para Timor – como “proposta realista, séria e credível”, sem mencionar uma única vez o imperativo da autodeterminação do povo sarauí, é, pois, um gesto de abdicação e de profunda incoerência. A mesma incoerência que Portugal criticou a quem se colocou ao lado da Indonésia ocupante de Timor e a quem agora se coloca ao lado da Rússia ocupante da Ucrânia. Um gesto de alinhamento com o Governo de Madrid, que, em março de 2022, fez saber a Mohamed VI que Espanha considerava o plano marroquino como a iniciativa “mais séria, realista e credível” para o futuro daquele povo.

Timor-Leste foi fator maior da credibilização do país na arena mundial. Portugal soube escolher um valor e lutar por ele contra todos os interesses. Desgraçadamente, relativamente ao Sara Ocidental, o Governo português parece agora desdizer tudo isso

A maneira como Portugal se bateu pelo Direito Internacional em Timor-Leste foi fator maior da credibilização do país na arena mundial. Portugal soube escolher um valor e lutar por ele contra todos os interesses. Desgraçadamente, relativamente ao Sara Ocidental, o Governo português parece agora desdizer tudo isso e ceder ao cinismo das potências e dos negócios, desprezando o Direito Internacional e os direitos fundamentais dos povos. É uma escolha grave porque delapida o melhor capital diplomático de Portugal. E é também um desafio aos tantos opinadores que dividem a sociedade portuguesa entre bons e maus a propósito da autodeterminação da Ucrânia – o que dizem (ou será que não dizem…) sobre a autodeterminação do Sara Ocidental?

Artigo publicado no jornal “Público” a 29 de maio de 2023

José Manuel Pureza
Sobre o/a autor(a)

José Manuel Pureza

Professor Universitário. Dirigente do Bloco de Esquerda
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