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O euro como um impossível projecto neoliberal

O problema de fundo é o de que temos uma moeda única sem um estado, sem uma união política e sem mecanismos de redistribuição de rendimento entre estados.

Em 1944, Karl Polanyi, no seu magistral livro “A grande transformação”, mostrava como o capitalismo se tem desenvolvido desde o século XIX à custa de forte intervenção estatal. A sua famosa frase “o laissez-faire foi planeado, o planeamento não” ilustrava a ideia de que a crescente desregulação dos mercados foi um projecto estatal, cujas consequências nefastas levaram a um processo de re-regulação. Em última instância, o movimento de liberalização apoiado no mito dos mercados auto-regulados acarreta pesadíssimos custos em termos de desemprego, pobreza e degradação ambiental, pelo que levará à desintegração da sociedade caso não seja travado.

A análise não poderia ser mais actual e aplica-se perfeitamente à crise do euro. O que atravessamos actualmente é uma crise política que resulta do desmoronamento de um projecto político: a união monetária sem união política.

Nunca na história do capitalismo existiu uma moeda sem um Estado que sirva como árbitro dos conflituantes interesses dos grupos económicos.

O real não poderia existir sem os Estados Unidos do Brasil, o marco não poderia ter surgido sem a unificação da Alemanha e o dólar não faria sentido sem os Estados Unidos da América. Criar uma moeda única para vários estados implica um grau de união política que a Europa está longe, muito longe de atingir.

A União Europeia a 25 é, desde logo, um espaço político desigual. Apesar das transferências dos Fundos de Coesão e outros fundos comunitários, as desigualdades profundas no nível de vida, no desenvolvimento tecnológico, no acesso à educação e na produtividade do trabalho, para dar alguns exemplos, são, ainda hoje, gritantes.

Pior, a abertura de fronteiras tende a piorar esta tendência, na medida em que economias periféricas e pouco competitivas (como a nossa) não conseguem sobreviver à concorrência num mercado único onde se encontram países que estão entre os mais ricos do mundo (Alemanha, França e Reino Unido) e países tecnologicamente muito avançados (como a Noruega e a Suécia). O resultado está à vista na desagregação do aparelho produtivo das economias menos competitivas e na persistência de diferenças salariais profundas.

A UE-27 é também um espaço político pouco democrático. Apesar de o Parlamento Europeu (PE) ser eleito directamente pelos cidadãos, o seu poder é limitado pelas interferências da Comissão Europeia e, em menor grau, do Conselho Europeu, órgãos não eleitos. Por outro lado, o distanciamento profundo do PE em relação às pessoas que representa, que tem o seu zénite na ausência de notícias sobre assuntos europeus na comunicação social, conduz a uma fraca adesão às eleições europeias, a um desinteresse generalizado pelo que se passa em Bruxelas e ao consequente aprisionamento das instituições europeias pelos lóbis industriais e financeiros.

Neste quadro político, o euro surge como uma construção artificial, uma moeda para um governo que não existe. O sustentáculo da moeda única acaba por ser, então, o Banco Central Europeu (BCE), uma instituição que goza de uma inédita independência face ao poder político. Em última instância, tudo isto implica que muitas das decisões que determinam a política económica e, logo, variáveis como a taxa de desemprego ou as desigualdades de rendimentos, são tomadas por um grupo fechado e centrípeto de burocratas que não prestam contas a ninguém.

A loucura de toda esta construção política feita à medida dos delírios neoliberais é evidente neste momento em que atravessamos mais uma crise capitalista. O BCE que não empresta dinheiro aos Estados Membros para preservar a sua independência empresta dinheiro aos bancos privados a taxas de juro baixas, que depois vão emprestar aos governos a taxas de juro altas. Os Estados Membros executam medidas de austeridade para conter o défice orçamental, que expande com a crise e com os concomitantes planos de salvação da banca, com o fim de agradar às agências de rating e assim enfrentar menores juros nos mercados de crédito. Tudo isto é feito para sustentar a moeda única, sem que sejam evidentes os ganhos que trouxe para os países periféricos da Europa.

Mas a crise do euro é sobretudo uma crise de solidariedade. Quando a Alemanha se recusa a contribuir para a salvação da Grécia, depois de ter conseguido importantes ganhos nas suas exportações à custa da relativa contenção salarial, sabemos que o projecto de uma Europa unificada morreu. Seria inconcebível ver um estado rico a negar ajudar um estado pobre durante um momento de crise nos EUA ou no Brasil, por exemplo. Se é concebível este cenário na Europa é porque o ideal de coesão territorial nunca foi mais do que um sonho.

O problema de fundo é, portanto, o de que temos uma moeda única sem um estado, sem uma união política e sem mecanismos de redistribuição de rendimento entre estados. Uma moeda única apoiada unicamente num banco central cujo poder de regulação dos mercados financeiros se revelou largamente insuficiente para travar o surgimento de novas bolhas especulativas. Uma moeda única cuja estabilidade supostamente depende do cumprimento de critérios em relação à inflação, ao défice e às taxas de juro cujo cumprimento é indispensável para agradar às agências de rating que ainda há pouco davam classificação máxima a activos tóxicos. Uma moeda para um mercado comum, onde se aprofundam desigualdades e se criam novas injustiças.

A esquerda tem perante si o desafio de propor soluções à escala europeia não só para superar a crise mas também para construir uma Europa dos povos, assente na solidariedade e na justiça. Não é um desafio pequeno mas o caminho do nacionalismo bacoco de quem defende o fechamento das fronteiras em nome da restauração do aparelho produtivo não é uma alternativa viável para quem defende a solidariedade internacionalista. Trabalhemos então, em conjunto com a esquerda socialista e democrática europeia, para dar corpo ao europeísmo de esquerda que já assumimos como causa nossa.

Sobre o/a autor(a)

Ricardo Coelho, economista, especializado em Economia Ecológica
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