O único caso de Guantánamo que será julgado em Nova York

porAmy Goodman

24 de abril 2011 - 0:28
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Serão expostos ao Supremo Tribunal do estado de Nova York os argumentos contra John Leso, um psicólogo acusado de participar de procedimentos de tortura na prisão de Guantánamo, que Obama prometeu fechar, mas não cumpriu.

No mesmo dia em que o Presidente Obama lançou oficialmente a sua campanha para a reeleição, o procurador-geral do seu governo, Eric Holder, anunciou que o julgamento dos principais suspeitos dos ataques de 11 de Setembro de 2001 não será realizado em tribunais federais, mas sim diante de polémicas comissões militares na prisão de Guantánamo, em Cuba. Holder culpou os membros do Congresso, os quais, segundo afirmou, “intervieram e impuseram limitações que impedem o governo de levar a julgamento, nos Estados Unidos, qualquer prisioneiro de Guantánamo.” No entanto, um caso de Guantánamo será julgado em Nova York. Não, não se trata do julgamento de Khalid Sheikh Mohammed, nem de nenhum dos seus supostos cúmplices. Nesta semana, serão expostos ao Supremo Tribunal do estado de Nova York os argumentos contra John Leso, um psicólogo acusado de participar de procedimentos de tortura na prisão de Guantánamo, que Obama prometeu fechar, mas não cumpriu.

A União pelas Liberdades Civis de Nova York e o Centro de Justiça e Responsabilidade (CJA, na sigla em inglês) apresentaram o caso em nome de Steven Reisner, psicólogo de Nova York e assessor dos Médicos pelos Direitos Humanos. Em torno de Reisner agrupa-se uma crescente quantidade de psicólogos que se manifestam contra a participação de colegas nos programas de interrogatórios do governo dos Estados Unidos, os quais, em sua opinião, equivalem à tortura. Ao contrário da Associação Médica Norte-Americana e da Associação Psiquiátrica Norte-Americana, a Associação Norte-Americana de Psicologia, a maior associação de psicólogos do mundo, negou-se a implantar uma resolução aprovada pelos seus membros que os proíbe de participar em interrogatórios em lugares onde se viola o direito internacional ou a Convenção de Genebra. O Dr. Reisner é filho de sobreviventes do holocausto e concorre à presidência da Associação Norte-Americana de Psicologia, em parte para obrigar ao cumprimento desta resolução.

O Dr. John Francis Leso é major do Exército dos Estados Unidos e ex-chefe do serviço de psicologia clínica do Centro Médico Walter Reed de Washington D.C. Segundo o comité de Justiça e Responsabilidade, o Dr. Leso “dirigiu a primeira Equipe de Assessoramento em Ciências do Comportamento (BSCT, na sua sigla em inglês) em Guantánamo, entre Junho de 2002 e Janeiro de 2003.” Ali foi “co-autor de um memorando de políticas de interrogatório que incorporavam técnicas ilegais adaptadas a partir de métodos utilizados pelos governos da China e Coreia do Norte contra os prisioneiros de guerra dos Estados Unidos”.

Reisner arquivou uma queixa na agência estatal de Nova York, o Escritório de Disciplina Profissional de Nova York (OPD, na sua sigla em inglês), responsável por outorgar a habilitação aos psicólogos, na qual solicita uma investigação e acção disciplinar apropriadas. Reisner explicou por que optou por este caminho: “Os profissionais da saúde estão sujeitos a valores morais superiores a interrogatórios ou a homens e mulheres do exército. Estão sujeitos a um código de ética e este código de ética surge do facto de que as pessoas são mais vulneráveis ante os profissionais da saúde porque eles têm acesso a informações privadas, debilidades, problemas psicológicos e físicos, e acedem a tal informação porque juraram não abusar dela para causar dano. Portanto, quando profissionais da saúde utilizam mal essa informação e o seu conhecimento, nós temos de submetê-las às suas obrigações éticas e assegurarmo-nos de que essas pessoas prestarão contas das suas acções, revogando-lhes a sua licença, se necessário.”

O Escritório de Disciplina Profissional de Nova York negou-se a dar início a uma investigação, e por esse motivo, Reisner tenta obter uma ordem judicial que obrigue o organismo a estudar o caso.

O oficial Leso recomendou três categorias de intensidade para os interrogatórios em Guantánamo em função da capacidade de resistência do prisioneiro. A “Categoria III” inclui “20 horas de interrogatório diário, isolamento extremo sem direito a visitas de profissionais da saúde ou profissionais do Comité Internacional da Cruz Vermelha, restrições alimentares durante 24 horas uma vez na semana, palcos desenhados para convencer o prisioneiro de que poderia passar por uma experiência dolorosa ou fatal, consequências físicas não consideradas lesões, remoção das roupas e exposição ao frio ou à água fria até ao momento em que o prisioneiro comece a tremer.”

Acredita-se que Leso teria participado do interrogatório de Mohammed Al-Qahtani, um jovem detido do Afeganistão a quem chamam de “20º sequestrado”. O interrogatório de Al-Qahtani foi tão severo que logo depois as suas acusações foram retiradas. Ele é representado pelo Centro de Direitos Constitucionais, o qual, em resposta ao anúncio do procurador-geral Holder, afirmou: “O governo de Obama admitiu uma falha política hoje ao anunciar que julgará os acusados dos ataques do 11 de setembro mediante o profundamente viciado sistema de comissões militares ao invés de fazê-lo em tribunais civis segundo o Artigo III da Constituição, como se tinha previsto inicialmente. Ao mesmo tempo que os Estados Unidos exortam à aplicação do Estado de Direito no Médio Oriente, subvertem-no na sua própria casa.”

É longa a lista de nomes de servidores públicos norte-americanos envolvidos com tortura, no entanto, nenhum deles enfrentou qualquer acusação: George W. Bush, Donald Rumsfeld, John Yoo, Alberto Gonzales e os psicólogos, coronel Larry James e major John Leso, entre outros. Ao mesmo tempo em que todo o mundo celebra a “primavera árabe”, nós, dos Estados Unidos, deveríamos virar a página e celebrar também uma “primavera norte-americana”, que recuse a tortura e não tenha medo de fazer uso do seu sistema judicial para julgar terroristas ou torturadores.

Denis Moynihan colaborou na produção jornalística desta coluna.

Texto em inglês traduzido por Fernanda Gerpepara Democracy Now! em espanhol. Texto em espanhol traduzido para o português por Rafael Cavalcanti Barreto, e revisto por Bruno Lima Rochapara Estratégia & Análise.

Amy Goodman
Sobre o/a autor(a)

Amy Goodman

Co-fundadora da rádio Democracy Now, jornalista norte-americana e escritora.
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