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No fundo, tudo na mESMA

Meio despercebida entre todo o ruído acerca do FMI, do FEEF e das birras do eixo franco-alemão acerca da governação económica na UE, há, desde Janeiro, uma autoridade de supervisão do sistema financeiro europeu...

Juros acima dos 7,4% com especulação de ajuda externa a Portugal” (Jornal de Negócios, 18.02.2011)

O debate da crise das dívidas soberanas na Europa tem sido dominado em parte pela diabolização do FMI, em parte pelo alargamento e flexibilização do mecanismo de emergência criado pela União Europeia, o Fundo de Europeu de Estabilização Financeira (FEEF), a adquirir carácter permanente a partir de 2013.

É certo que é imperativo fortalecer massa crítica contra a teoria económica da austeridade e contra a imposição tecnocrata em detrimento da deliberação democrática. Como também importa repensar o FEEF de forma a garantir que a sua capacidade de mobilização efectiva e que os mecanismos de concessão de financiamento de que dispõe são suficientes para evitar futuras crises de financiamento em qualquer Estado Membro.

No entanto, a importância que estas questões têm não pode desviar a atenção da forma como este mecanismo permanente de resgate está a ser desenhado, como se vai inserir e relacionar com a restante arquitectura da União. Quer dizer, uma vez que o FEEF emite títulos de dívida nos mercados financeiros, importa, muito particularmente, averiguar como se relaciona esta entidade com a arquitectura do sistema financeiro vigente na UE e que significados políticos contem essa relação, isto é, quem é que, realmente, sai beneficiado e quem é que sai prejudicado.

No início deste ano, entrou em vigor o novo enquadramento europeu de supervisão do sistema financeiro. Meio despercebida entre todo o ruído acerca do FMI, do FEEF e das birras do eixo franco-alemão acerca da governação económica na UE, há, desde Janeiro, uma autoridade de supervisão do sistema financeiro europeu com poderes agora para controlar ataques especulativos contra títulos de dívida soberana.

Este novo sistema é composto por um organismo de supervisão macro, o European Systemic Risk Board, encarregue de vigiar a estabilidade do sistema financeiro no seu todo, e por três autoridades dedicadas à vigilância específica dos vários sectores financeiros: a European Banking Authority (para a supervisão da banca), a European Insurance and Occupational Pensions Authority (para a supervisão dos instrumentos financeiros relativos a seguros e pensões) e a European Securities and Markets Authority (ESMA), destinada à supervisão dos mercados de valores mobiliários.

É sob o escrutínio desta última que estão os mercados onde se transaccionam os títulos de dívida soberana; é sob a sua vigilância que operam as lógicas que ditam as condições de financiamento das economias e que acontecem os ataques especulativos contra títulos de dívida soberana, muito em particular através do short-selling.

O short-selling é uma actividade financeira em que um investidor aposta (e lucra) na queda do preço de um título. Esse agente “pede emprestados” títulos financeiros, detidos geralmente por bancos, para os vender a outros agentes, apostando em que, na altura de devolução dos títulos emprestados, poderá comprar no mercado títulos idênticos a um preço inferior e reter a diferença.

Perante a possibilidade de um resgate do FEEF, a que se seguiria uma queda dos juros da dívida portuguesa, seria muito lucrativo para este investidor pressionar estes títulos. A escalada dos juros exigidos levaria à intervenção do Fundo e, após a descida dos juros, o nosso investidor iria então ao mercado comprar estes títulos para devolver ao intermediário que lhos havia “emprestado”, lucrando, desta forma, com a diferença entre o preço a que os vendera e o preço a que agora os podia recomprar.

Ora, apesar de algumas vozes críticas que reclamam uma solução de dívida europeia mais estrutural, tudo indica que o FEEF será mantido com os contornos e o carácter de intervenção externa, de resgate e de “emergência”. Isto significa que o short selling continuará a ser uma aposta ganha. É negócio garantido quando é a própria arquitectura do sistema a permitir profecias auto-realizáveis.

Voltando à ESMA, que assiste a tudo isto, acontece que, para o cumprimento da sua missão de “salvaguardar a estabilidade do sistema financeiro da União Europeia, garantindo a integridade, transparência, eficiência e ordem no funcionamento dos mercados de valores mobiliários, e melhorando a protecção do investidor”, ela dispõe de um poder particularmente interessante:

A autoridade pode temporariamente proibir ou restringir certas actividades financeiras que ameacem a ordem e a integridade dos mercados financeiros ou a estabilidade do conjunto ou de parte do sistema financeiro da União (…)”1

Quer isto dizer que, em certas “situações de emergência”, de ameaça à estabilidade do sistema financeiro da UE, a ESMA teria o poder de proibir ou, pelo menos, restringir as actividades de short-selling relativas a títulos de dívida pública. E o risco de incumprimento de um Estado Membro é, sem dúvida nenhuma, uma ameaça à salubridade do sistema financeiro da União.

No entanto, perante a mesma situação de emergência, entre uma solução preventiva, de proibição de actividades especulativas, e outra, paliativa, que acaba por beneficiar quem apostou na insolvência dos Estados, não é difícil notar a tendência para esta última; a bem da “protecção do investidor”.


1 EC (2010), Art. 9(5), disponível em www.esma.europa.eu

Sobre o/a autor(a)

Investigadora em políticas públicas
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