A natureza do conflito entre Presidente da República e Governo

porAdelino Fortunato

09 de janeiro 2024 - 22:37
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Muita gente não entendeu o real significado do atual conflito institucional entre o Presidente da República e o Primeiro-Ministro, vendo nele apenas uma espécie de birra ou de confronto de personalidades. Na realidade, em política não há birras, mas sim disputa pelo controlo do poder e pela hegemonia.

Muita gente não entendeu o real significado do atual conflito institucional entre o Presidente da República e o Primeiro-Ministro (ou seja, entre Marcelo e António Costa), vendo nele apenas uma espécie de birra ou de confronto de personalidades. Na realidade, em política não há birras, mas sim disputa pelo controlo do poder e pela hegemonia. Marcelo, a partir de determinado momento do seu segundo mandato, sobrepôs-se ao Parlamento, de onde emana o governo, com exigências sucessivas, em particular a demissão do ministro Galamba. Costa, que tinha um histórico de colaboração institucional com o Presidente da República quando o seu governo não tinha maioria, pressentiu a degradação daquele relacionamento e resistiu, para tornar evidente a sua autonomia e para evitar uma espécie de tutela humilhante.

É verdade que Galamba, o ex ministro das Infraestruturas, merecia ter sido demitido quando a crise atingiu o seu pico no âmbito do dossiê TAP, mas Marcelo estava apenas a colecionar motivos de queixa face a um governo com maioria absoluta no Parlamento, que lhe retirou espaço de influência, de iniciativa e de manobra. Isso ficou claro logo na cerimónia de tomada de posse do governo, em 2021, quando Marcelo afirmou que o desaparecimento do Primeiro-ministro (supostamente para desempenhar um cargo na União Europeia) significaria sempre a dissolução do Parlamento e a convocação de eleições antecipadas. Esta declaração configura uma leitura bastante extensiva dos poderes presidenciais, uma vez que, do ponto de vista constitucional, outras soluções são possíveis para substituir um primeiro-ministro, como aconteceu no passado, nomeadamente o convite a uma outra personalidade da mesma área política para presidir a um novo governo do partido maioritário.

O confronto entre Presidente e Primeiro-ministro, ou entre presidência da República e Parlamento, é um clássico da política institucional onde se jogam as diferentes legitimidades conferidas pelo sistema eleitoral. Ainda que ambas sejam legítimas à luz da natureza semipresidencialista do nosso sistema, a vertente parlamentar do regime político é mais saudável que a vertente presidencial, pelo simples motivo de que no parlamento estão representadas diferentes forças partidárias, cada uma com a sua representatividade junto dos eleitores, que exercem vigilância sobre a atividade governativa. Não existe mecanismo equivalente em relação ao Presidente da República que, simplesmente, consulta o Conselho de Estado em momentos especiais e responde perante a opinião pública, em termos de popularidade, pelas consequências das suas decisões. Aliás, Marcelo, bom conhecedor da Constituição Portuguesa e professor de Direito, sempre ativou este último mecanismo de legitimação convertendo-se no designado “presidente dos afetos”, distribuindo beijos e “selfies” um pouco por todo lado.

Esta dimensão do conflito de poderes tem antecedentes históricos e foi capaz de fornecer lições relevantes para a ciência política. É o caso do chamado bonapartismo, modelo geralmente associado ao papel discricionário de uma figura do Estado que procura sobrepor-se ao Poder Legislativo (Parlamento), funcionando como árbitro dos conflitos partidários ou das confrontações sociais, quando estas parecem aparentemente insolúveis. Este tipo de solução abre espaço a uma figura forte que se instala no sistema político quando nenhuma classe ou grupo social são capazes de ser hegemónicos. O nome adotado resulta do papel excecional assumido por Luís Bonaparte (e seu sobrinho Napoleão III) na governação, concentrando nas suas mãos a totalidade do poder executivo, desprezando o papel do Parlamento. Karl Marx escreveu em 1852 o “18 de Brumário de Luís Bonaparte”, livro onde descreveu, à luz dos acontecimentos revolucionários entre 1848 e 1851, a forma como o então Presidente da República forçou alterações no regime político que acabariam com a sua autonomeação como imperador.

Outro exemplo clássico é o de Bismark na Alemanha do século XIX. Construtor do Estado Nacional único germânico, Bismark, para alcançar o Segundo Império desprezou os recursos do liberalismo político e preferiu a política da força. Alguns autores estendem também esta noção de concentração de poderes numa figura do Estado à noção assemelhada de cesarismo, inspirada no papel de Júlio César na Roma Antiga. Neste caso, especificamente, um chefe militar apresenta-se como alternativa para proceder à regeneração da sociedade ou para conjurar hipotéticos perigos internos ou externos, sendo que o cesarismo também se carateriza pela tentativa de imposição de soluções militares para resolver problemas políticos.

Em todos estes casos está em causa o equilíbrio associado ao princípio da separação de poderes, desfeito pela iniciativa de um desses poderes, sacrificando a importância da componente parlamentar do sistema. Naturalmente, a crise política que vivemos neste momento em Portugal não tem a intensidade e a dimensão que estes últimos exemplos procuram evidenciar, mas é sempre útil evitar a banalização daquilo que pode romper o frágil equilíbrio entre as diferentes instituições do regime democrático. Sobretudo no momento em que, um pouco por todo o mundo, se podem perfilar projetos assumidos com esse objetivo.

Artigo publicado em “Raio de Luz” em dezembro de 2023

Adelino Fortunato
Sobre o/a autor(a)

Adelino Fortunato

Economista e professor universitário. Dirigente do Bloco de Esquerda.
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