Líbia: um grito de indignação

porLuís Leiria

23 de fevereiro 2011 - 1:01
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O povo líbio precisa da nossa solidariedade, não de “diplomacia económica” que fecha os olhos às atrocidades.

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O embaixador da Líbia na ONU denuncia o genocídio do seu povo, praticado pelo regime do coronel Kadafi. O ministro da Justiça líbio renuncia em protesto contra o uso de violência para reprimir os protestos. As notícias que conseguem furar o cerco informativo montado pelo gangue kadafista dão conta de tanques a disparar contra o povo; de aviação bombardeando a cidade de Bengazi; de snipers, instalados em prédios altos no centro de Bengazi, assassinando os seus concidadãos aleatoriamente e a esmo. E diante disto, Luís Amado mostra-se preocupado com a guerra civil em que a Líbia pode mergulhar, e pede um plano Marshall para a região para conter o fundamentalismo islâmico.

É vergonhoso. É indignante.

“Guerra civil”? Isso foi o que disse o filho-herdeiro de Kadafi na TV. Mas não há guerra civil alguma. O que há é uma valente, corajosa sublevação contra um dos piores estados policiais do mundo. Um estado policial que entrou em agonia e que reage à bruta matando e matando e matando. Quantos mortos? Ninguém sabe, mas estão na casa das centenas. Esta já é a mais sangrenta das sublevações do mundo árabe.

O governo português não mexeu até agora um dedo para denunciar o genocídio e a tirania de Kadafi. Por que não denuncia os crimes contra a Humanidade que aquele regime está a cometer?

Luís Amado e José Sócrates conhecem muito bem a Líbia. Ainda em Setembro do ano passado estiveram em Tripoli nas comemorações do aniversário da “Revolução” de Kadafi. Conviveram com o ditador, ouviram os discursos de elogio exaltante do regime, assistiram aos desfiles militares, de grupos de música beduína, de crianças a gritar vivas “à mãe pátria Líbia”.

É a famosa “diplomacia económica”. Sócrates já considerara, um ano antes, também em visita a Tripoli, que a Líbia é “um parceiro estratégico para Portugal”. Tradução: se temos interesses económicos, não importa que o regime kadafista seja uma ditadura.

A Líbia é um dos principais fornecedores de petróleo bruto a Portugal, que a Galp refina. As importações portuguesas de combustíveis daquele país mais que duplicaram no ano passado.

Mas o petróleo que a Galp comercializa está manchado do sangue dos líbios.

É inexplicável, é inaceitável que o governo português não condene claramente o genocídio em curso, e que no mínimo ameace romper todas as relações com a Líbia.

Há sete anos estive na Líbia, junto com a equipa que preparava a série documental “Périplo”, realizada por Camilo Azevedo e apresentada por Miguel Portas. De todos os países que visitámos então, esta era a mais assustadora ditadura. Percorremos quase dois mil quilómetros para visitar o seu espantoso património histórico, sempre acompanhados por polícias que supostamente cuidavam da nossa segurança e nunca nos largavam. Havia barreiras militares nas estradas de 200 em 200 quilómetros.

Bengazi, o centro do levantamento, é a capital do petróleo e o lugar onde desemboca o grande rio artificial, a obra megalómana de Kadafi que traz água paleolítica de jazidas no fundo do Saara para abastecer as torneiras da cidade. O seu centro, virado para o porto, parece o de uma cidade do século XXI: edifícios modernos, largas avenidas. Mas basta caminhar algumas centenas de metros – como fizemos uma vez, conseguindo fugir aos polícias – para descobrir a verdadeira cidade, de casas pobres e ruas de terra batida.

Por todo o lado há outdoors do homem que não tem qualquer cargo formal: é o “líder da revolução”. O líder adora deixar a sua marca. No museu nacional de Tripoli, ao lado de maravilhas da Roma antiga, está o carocha que o “líder” usava quando fez a “revolução”. Kadafi não gosta de boxe nem de corridas de camelos, e por isso elas são proibidas. E o mais incrível: é proibido regatear preços. Só na Líbia é que há mercados com preços fixos, os únicos de todo o mundo árabe.

É neste país que está em curso mais uma revolução. E o povo líbio precisa da nossa solidariedade, não de “diplomacia económica” que fecha os olhos às atrocidades.

Luís Leiria
Sobre o/a autor(a)

Luís Leiria

Jornalista do Esquerda.net
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