Imposto de Solidariedade, uma história antiga em 10 notas

porMiguel Portas

26 de agosto 2011 - 12:29
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Nós falamos de um verdadeiro imposto que englobe o património. É aí que se realiza a justiça e se garante a eficácia do próprio imposto.

1. O mito diz que o bloco nasceu, em 1999, em resultado de uma singular e improvável confluência entre trotskistas e estalinistas... para fazer vingar uma agenda de costumes. Era a "esquerda caviar", que aliás ninguém previa que durasse.



2. Formado em Março, o bloco disputou inicialmente as eleições europeias. Nessa disputa, centrou a campanha numa ideia - começar de novo -; numa atitude - contra a guerra dos balcãs, que então marcava a Europa; e numa proposta dita "fracturante" - a despenalização do consumo de drogas para combater a toxicodependência. O resultado esteve longe de ser brilhante, mas também não era para ser conclusivo. Em três meses, nem então nem agora se fazem milagres.



3. Imediatamente a seguir às eleições europeias o país avançou para legislativas. Um novo tema se sobrepôs à agenda política europeia: a solidariedade com o povo de Timor Leste, entre o fim de Agosto e o início de Setembro. O bloco envolveu-se profundamente na dinâmica unitária dessa causa, enquanto preparou as legislativas adicionando ao tema da toxicodependência um pacote de 18 propostas de lei para uma reforma fiscal em Portugal. A proposta mais emblemática era a criação de um imposto sobre as grandes fortunas que já então, na nossa visão, englobava rendimentos e património.



4. Ao contrário do mito, o Bloco elegeu 2 deputados por Lisboa e ficou a mil votos de um terceiro pelo Porto, não por causa das drogas, mas porque desde o seu nascimento procurou articular numa mesma proposta política, causas maioritárias na sociedade - como a vontade de uma reforma fiscal - com outras que, sendo ainda minoritárias, podiam ser transformadas em questões sociais muito relevantes - assim era, então, com a toxicodependência, como viria a ser, anos mais tarde, com a "segunda volta" da despenalização do aborto.



5.Na eleição legislativa em causa, os 2 deputados do bloco faziam, não raro, a diferença entre maioria e minoria no Parlamento. Eles usaram essa circunstância em favor da mudança de leis sempre que puderam - se bem me lembro, o bloco aprovou mais de 20 propostas de lei sob o segundo consulado de António Guterres.



6. Na discussão do Orçamento de Estado para 2001 o bloco admitiu a sua viabilização, através da abstenção, se ele incluísse a nossa proposta de imposto sobre as grandes fortunas. Fomos mesmo mais longe na negociação com António Guterres: subimos a parada desse imposto de cem mil contos para um milhão. Para nós contava o princípio, o sinal de que os ricos e o seu património não continuariam ao abrigo de impostos. Isso valia bem uma missa.



7. Na sua formulação final, a nossa proposta já só incidia sobre algumas dezenas de famílias. Nem assim António Guterres aceitou o compromisso. Foi nessa altura que me convenci definitivamente de que há algo de irracional - ou, pelo contrário, excessivamente racional... - no mantra dos políticos do sistema, segundo o qual os ricos nunca podem ser taxados porque "escondem o dinheiro". Foi assim com Guterres. Ele preferiu encontrar um deputado no CDS, Daniel Campelo, que lhe desse a maioria parlamentar a troco de umas quantas obras no concelho, a modernizar, com alguma justiça, o nosso próprio sistema fiscal. Selou com essa decisão o seu próprio destino político. Um ano mais tarde demitia-se.



8. O Bloco nunca deixou de reapresentar, em diferentes modalidades técnicas, a sua proposta de imposto sobre as grandes fortunas ou, como lhe chamamos hoje, imposto de solidariedade. Entre ele e o que o Presidente da República tem sustentado, vai uma enorme diferença. Cavaco Silva fala em sobretaxa no IRS, Passos Coelho em mudanças na lei de enquadramento orçamental. Nós falamos de um verdadeiro imposto que englobe o património. É aí que se realiza a justiça e se garante a eficácia do próprio imposto.



9. Sobretaxar em sede de IRS não realiza nem mais justiça nem garante eficácia. Américo Amorim declara 230 mil euros de IRS, se ontem ouvi bem na Sic. Ricardo Salgado, pelo contrário, declara bem mais... por outras palavras, encontramo-nos ante técnicas contabilísticas sem relação com as fortunas em causa. Por outro lado, a subida de 42 para 46,5 por cento da taxa máxima de IRS incidiu sobre 30 mil famílias acima de 153 mil euros de rendimentos anuais declarados, rendendo ao Estado apenas 30 milhões de euros. Não faz qualquer sentido aumentar este tipo de taxa à luz de objectivos de justiça na repartição das dificuldades.



10. A proposta do bloco até é bem moderada. Cinge-se a rendimentos e patrimónios acima de 1,2 milhões de euros; jóias de família, antiguidades, obras de arte, habitação principal e créditos litigiosos ficam de fora dos cálculos; e a taxa é progressiva, entre 0,6 a 1,2 por cento, começando em rendimentos que representem 2500 salários mínimos. Como no início desta pequena história, o que conta é o modo como, em nome dos mais pobres, a esquerda confronta o poder dos mais ricos. Mais do que a radicalidade da proposta em concreto, conta o que é decisivo: quando estará este país preparado para taxar o capital?

Miguel Portas
Sobre o/a autor(a)

Miguel Portas

Eurodeputado, dirigente do Bloco de Esquerda, jornalista.
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