Eurovisão e Política: a hegemónica hipocrisia cultural europeia

porRafael Pereira

05 de maio 2024 - 22:31
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Faltam poucos dias para a exibição da 73a edição do mais famoso festival musical europeu. Ao permitir a participação de Israel na Eurovisão, após anos de sucessivos bombardeamentos e ocupações ilegais, os países europeus parecem aceitar tacitamente o massacre constante do povo palestino.

Representatividade, apologia de conflitos internacionais e construção de narrativas imperialistas. Tudo isto assume grande peso no mundo atual, e está presente nos vários meios que nos rodeiam enquanto consumidores inseridos em um sistema capitalista europeu. É um percurso que encontra muito eco nos meios de comunicação, que consciente ou inconscientemente concedem palco aos recentes mártires de extrema-direita, mas é também um percurso indissociável na cultura, especialmente quando esta se encontra num estranho limbo entre a arte e a política.

Como se sabe, faltam poucos dias para a exibição da 73a edição do mais famoso festival musical europeu, a Eurovisão. A relação desta com a política, tanto nas músicas que são apresentadas, como nos países convidados, é longa. Torna-se incontornável a compreensão da Eurovisão como um conceito retirado dos mais clássicos dos estudos de Antonio Gramsci. É a ilustração perfeita do conceito de hegemonia cultural, onde de um evento e símbolo tão importante e anualmente relevante como a Eurovisão se consegue solidificar um panorama de crenças e convicções comuns.

Tendo em conta a sua recusa paulatina em expulsar Israel face ao conflito na Faixa de Gaza, à semelhança do que foi feito em 2022 com a Rússia, torna-se fundamental perceber o lugar político da Eurovisão e a responsabilidade do evento nas questões geopolíticas, bélicas e morais.

Eurovisão como Espaço Político?

Afirmar que a Eurovisão não é um espaço político é um argumento muito pouco realista em termos históricos. A arte e cultura têm inerentemente uma natureza política adjacente, um contexto social que a faz surgir, e um contexto económico que a patrocina. A Eurovisão enquanto espaço de competição musical a nível europeu surge pela primeira vez em 1956 na Suíça, onde o paradigma europeu pedia pela construção de um espaço seguro, de partilha de ideais e de pertença àquilo que se queria enquanto sistema de valores europeu. A fundação deste sistema de valores responde assim, recuperando a introdução, a um dos conceitos gramscianos mais importantes: solidificação de uma hegemonia cultural.

Este sistema de valores foi criado por forte ingerência política e cultural dos seus países fundadores na tentativa de estabelecer um panorama onde se justificassem as relações de poder subjacentes e fundacionais da própria Comunidade Económica Europeia. Não é por acaso que a Eurovisão partilha os mesmos objetivos fundacionais que a CEE (atual UE): com uma Europa que se quer voltada para o futuro, para o progresso, para a defesa dos direitos humanos e da paz, mantendo sempre uma linha liberal cultural e economicamente. Foi um sucesso, e o constante aumento no número de participantes ilustra bem a mudança estrutural que a União Europeia conseguiu levar a cabo e implementar favoravelmente.

A Eurovisão não é, no entanto, um mecanismo de propaganda política, proibindo-se demonstrações políticas explícitas durante o festival ou nas músicas apresentadas. Não haverá assim, à partida, uma ingerência governativa direta naquilo que é a génese do evento. Porém, seria ingénuo considerar que a participação neste espaço não serve um propósito de soft power diplomático, legitimando o país vencedor, todos os outros que continuamente participam na competição, e a própria emissora europeia.

Por um lado, a Eurovisão é sim um espaço político pelas canções que entram em competição e desejam ganhar a edição. Muitas foram as canções levadas às várias edições que abordaram temáticas gerais e concretas, sobre atuações políticas, conflitos internacionais ou questões identitárias. As participações da Ucrânia em 2007 e 2016 (ambas críticas do governo Russo e da guerra) ou a participação da Arménia em 2015 (um tributo às vítimas do genocídio arménio) são apenas alguns exemplos daquilo que pode servir como uma crítica política implícita ou explicitamente, mas sempre ajustada àquilo que são os valores e posições europeias, passando pelo aval da União Europeia de Radiodifusão (EBU).

Por vezes as críticas surgem em tom irónico, como a participação mais recente da Croácia pela banda Let 3 que foi descrita como uma sátira “anti-guerra”. Outras vezes as críticas podem ser diretas, como a tentativa de participação da Bielorússia em 2021, uma crítica da oposição a Lukashenko, que acabou por ser banida da competição nesse mesmo ano. Mas na maioria das vezes, as participações assumem um tom entrelinhas, de modo a passar a sua mensagem sem hostilizar muito as emissoras nacionais e a EBU. Usando as canções como um meio, a defesa da Eurovisão é a defesa da Europa e vice-versa, e arte produzida no contexto da competição europeia não se dissocia dela e do panorama político por que se atravessa.

Por outro lado, os sistemas de votação e de atribuição de pontos, muitas vezes ignorados enquanto ferramenta diplomática, são essenciais para compreender as dinâmicas nacionais e as políticas de diplomacia internacional dos vários países participantes. Por exemplo, a relação histórica de votação entre a Grécia e o Chipre, entre Portugal e os países dos seus emigrantes, e entre o antigo bloco soviético, são bastante ilustrativos do quão importante é o panorama político para o desenvolver do concurso. Estes são países que, no momento de atribuição de pontos, decidem sempre dar a maior fatia de pontuação ao país com as maiores ligações histórico-culturais, isto é, sempre que ambos acabam qualificados na final.

Por fim, é importante perceber que, à semelhança de qualquer conteúdo cultural, existe uma mensagem, um subcontexto e uma opinião subliminar, tanto da organização do evento como do público que o assiste. Se a Eurovisão foi criada com o intuito de guiar todos os países participantes a um sistema de valores comum, e supondo que esses valores consistem nos já mencionados, o objetivo destes é desenvolver aquilo que ultimamente se pretende na Europa e nos seus “países amigos” - como são Israel e Austrália, mas também a Turquia que abandonou em 2013 a competição. Uma cultura democrática, plural, aberta a todos em todas as suas formas de ser e existir, focada na cooperação, amizade e respeito.

Os países participantes, e até mesmo aqueles que não participam mas emitem o festival nos seus canais nacionais, precisam de estar conformados com a exposição a conteúdos que podem destoar com aqueles proclamados politicamente dentro do seu país. A título de exemplo, tendo em conta que a Eurovisão é um evento cada vez mais focado nas temáticas LGBT+ apelando a esse mesmo público, países com políticas anti-LGBT - como a Rússia, Hungria, Turquia ou até a China - estão claramente desenquadrados nos valores propostos, inclusive deixando alguns destes de participar e transmitir o festival na sua integridade.

No fundo, o espaço da Eurovisão é sim um espaço político, mas bastante limitado, adstrito ao sistema de valores quase centenário. As intervenções políticas, quando não se encontram subliminarmente nas letras das canções, assumem sempre lugar na integridade do evento. O que a organização da Eurovisão e a EBU pretendem da politização do seu festival é que esta seja sempre muito sintonizada com aquilo que é a ideia comum das doze estrelas da bandeira da UE.

Por vezes, o contexto político internacional destoa com os valores promovidos dentro do festival. Conflitos bélicos, governos ultraconservadores ou atentados à democracia são ocorrências políticas que têm influência no evento, e que assolam os seus países participantes. Quando isso sucede, são comuns as tentativas de boicote da participação daquele país por outros que discordam com a sua atuação. A Eurovisão é, como já dito, uma ferramenta de soft power e culturalmente hegemónica e, portanto, todas as suas decisões necessitam de estar conformes ao seu próprio sistema, não podendo permitir que um país possa promover o seu próprio sistema ultraconservador e bélico - mesmo que com as suas devidas exceções.

É neste momento que surge a importância do boicote como ferramenta preventiva para o contínuo controlo político-cultural da Eurovisão e da própria União Europeia. Resta perceber se, de facto, o boicote - seja enquanto declaração pública, petição ou desistência de participação e exibição - é uma estratégia que funciona a longo prazo e se produz os efeitos desejados para os países, artistas ou emissoras nacionais que o levam a cabo.

Os Boicotes como Estratégia Diplomática

As questões do boicote como ferramenta de persuasão ou ingerência política na Eurovisão sempre acompanharam a história do evento. Em união ou unilateralmente, os países sempre garantiram uma forma de mostrar o seu desagrado com as condições da competição, o seu ambiente político e/ou ideológico. Referida anteriormente, a canção ucraniana em 2016 “1944” era uma crítica aberta à mais recente anexação da Crimeia pela Rússia, e tendo vencido aquela edição acumulou muitas críticas e tentativas de boicote por parte da Rússia como contestação ao teor da canção que, na sua ideia, difamava o país e o seu propósito na Crimeia.

Antes disso, a Turquia também usou a sua carta política de boicote quando, em 2013, deixou de participar por discordar acerca da representação da comunidade LGBT+ e contestou também a vitória de Conchita Wurst, famosa drag queen austríaca, em 2014. Ao não participar, mostrou o seu desagrado com as políticas progressistas da UE, não tendo regressado até agora. A Turquia é um exemplo perfeito de um país que, quando não alinhado com os valores e objetivos da Eurovisão e, portanto, de toda a Europa liberal, necessitou de fazer uma escolha. E se um exemplo de ligação entre a política e o festival fosse preciso, basta atentar aos motivos pelos quais a Eurovisão não considera a Turquia apta para participar, comparando com os motivos que a União Europeia tem para recusar paulatinamente a entrada da Turquia para o círculo dos 27.

A petição levada a cabo pela Ucrânia em 2022, antes do início da competição, foi também uma tentativa de boicote, apelando aos valores intrínsecos europeus para que não permitissem que a Rússia, um país que promovia uma política expansionista e imperialista e que aos poucos ameaçava o seu território, pudesse apresentar-se artisticamente. A única diferença de todas as outras tentativas é que esta foi consensual e cooptada por grande maioria dos países europeus em competição. A posição relativamente à Rússia é assim o mais importante exemplo de como a união entre emissoras nacionais, artistas e o panorama político do espaço europeu, pode sim tornar uma tentativa de boicote um sucesso. O caso de 25 de Fevereiro de 2022 é assim um excelente precedente, que deixa claro que medidas podem sim ser tomadas relativamente a qualquer país que ameace o sistema de valores eurovisivos.

25 de Fevereiro de 2022: sanções até na cultura

O conflito russo-ucraniano teve o seu início no dia 24 de fevereiro de 2022, mesmo que pareça hoje tão longínquo. Os meios de comunicação social substituíram as informações diárias sobre a pandemia Covid-19 e passaram a dar relatos extensos e insistentes sobre o desenvolvimento da guerra. Recorde-se, a Europa parou em completo choque e descrença de que uma guerra pudesse acontecer novamente tão perto.

Os discursos foram vários, mas o posicionamento político internacional foi só um: uma condenação pela quebra do clima de paz, voto de pesar pelas vítimas e pelo desastre causado, e a necessidade de respostas político-económicas imediatas. Porém, mais rápido ainda que as respostas vindas do Parlamento Europeu e da Organização das Nações Unidas, foi a resposta vinda da União Europeia de Radiodifusão (EBU). No dia 25 de fevereiro de 2022, a emissora europeia - que em nada se liga à União Europeia - decidiu expulsar a Rússia de participar no Festival da Canção Europeu. A decisão veio depois de pressão de vários países como a Suécia, Lituânia, Países Baixos, entre outros, e de uma petição da própria Ucrânia, sendo que inicialmente a EBU não pretendia retirar a Rússia da competição.

“À luz da crise sem precedentes na Ucrânia, a inclusão de uma entrada russa no Concurso deste ano traria descrédito à competição” foi assim o comunicado oficial da emissora e a decisão tornou-se final, banindo até agora o país de competir. Muitos artistas russos se manifestaram contra esta decisão, tendo em conta de que uma guerra promovida pelo seu governo não era necessariamente uma guerra promovida em seu nome. A última representante da Rússia em 2021, a artista Manizha Sanghin, pedia claramente nas suas redes sociais que se revertesse a decisão, para que não se quebrassem as últimas pontes de colaboração porque “onde os políticos não encontram paz, talvez os artistas consigam”. Manizha tentou fazer o mundo perceber que a arte pode ser uma forma de protesto, uma “tribuna para músicos que defendam a paz” como lhe chamou. Recordou inclusive, no seu Instagram, a curiosa participação em 2009 de uma artista judia e um artista árabe como representantes de Israel, que falavam sobre “haver outra forma” - tradução do título da canção, implicitamente sobre a guerra israelo-palestina - o que hoje mais que nunca se torna verdadeiramente importante.

Contudo, foi em vão. A postura “apolítica” da Eurovisão e da EBU, ao banir a Rússia do seu evento, abriu um precedente. Precedente esse que levou à desclassificação russa em todas as demonstrações culturais e desportivas desde esse momento e que ainda se mantém.

Apesar disso e até à data deste ensaio, esta mesma postura convive bem com a participação de Israel, mesmo depois dos seus 75 anos de opressão colonial contra o povo da Palestina e depois de tomar conhecimento do que está a pouco de ser considerado legalmente um genocídio em toda a Faixa de Gaza. É necessário retomar assim a ideia do sistema de valores e objetivos do festival, e da importância do boicote internacional, mas não sem antes atentar à atuação de Israel e à sua importância nos últimos 51 anos de participação no evento.

Israel e a Legitimação Político-Cultural Europeia

Israel sempre viu na Eurovisão uma forma de se enquadrar no âmbito dos valores europeus, promovendo uma imagem externa que colocasse o seu Estado para além da visão do “conflituoso Médio Oriente” e mais próxima da visão de uma democracia moderna, inclusiva e progressista. Desde 1973 que Israel compete juntamente com os “países amigos” da Europa, procurando a validação que tanto precisa para construir a sua narrativa moderna, entrando em um diálogo performativo consigo mesmo e com o resto do mundo. O constante uso das imagens que cada vez mais são apelativas ao público “eurovisivo” são relativamente fáceis de usar enquanto estratégia política, mesmo que isso venha com o custo de acusações de Pinkwashing, Queerbating e Veganwashing, ou seja, o uso de pessoas mulheres, LGBTQ+ e veganas para fins políticos desconsiderando na verdade a sua existência dentro do território e o tratamento político-social associado.

Ao permitir a participação de Israel na Eurovisão, após anos de sucessivos ataques, bombardeamentos, ocupações ilegais e internacionalmente criminosas, os países europeus parecem aceitar tacitamente o massacre constante do povo palestino e de um genocídio que cada vez mais se torna incontestável. Os laços políticos, ideológicos e culturais que a Europa continua a estabelecer com Israel são, também, um pronunciamento diplomático inaudível mas bastante palpável, como se se tratasse de uma aceitação passiva em prol do estabelecimento de uma democracia europeia no Médio Oriente ou em prol de um sucesso europeu.

Para Israel, a participação no festival europeu é uma estratégia de comunicação, de controlo da narrativa, podendo desta forma escolher que valores pretende mostrar e dar a conhecer ao resto dos participantes. As suas sucessivas vitórias, em especial a mais recente em 2018, foi essencial. Essencial porque, ao contrário do antes dito sobre a Eurovisão não ser uma ferramenta de propaganda e um meio de atuação governativa, a vitória da artista Netta foi sim, uma vitória para Benjamin Netanyahu e para o sistema político israelita.

Com tudo isto, é legítimo o questionamento sobre se Israel acompanha verdadeiramente os tão prezados valores europeus liberais, progressistas, pacifistas e defensores dos direitos humanos, bem como os objetivos de estabelecer uma democracia plural, socialmente responsável e patrocinadora da inclusão. E, considerando historicamente tudo aquilo que constrói a memória daquele povo, do povo palestino e do papel desempenhado pela ONU e pelos países europeus, não parece ser possível que ano após ano se permita a Israel fazer uso da plataforma “eurovisiva” para continuar a reeditar a sua história e os seus valores.

Israel nunca se alinhou com os valores europeus que servem de base ao festival e a toda a Europa

Israel nunca se alinhou com os valores europeus que servem de base ao festival e a toda a Europa. Desde logo tendo em conta as contradições relativamente à posição do Governo sobre pautas identitárias, pois se por um lado envia os mais diversos e inclusivos artistas para representar o território, por outro lado são incontáveis os relatos que chegam sobre violência contra a comunidade LGBT+, pessoas mulheres e pessoas com crenças religiosas diversas. Mesmo dentro da competição, Israel demonstrou ser opositor da pluralidade democrática quando em 2000 rejeitou a participação da banda Ping-Pong em seu nome, forçando o grupo a pagar a integridade das despesas que surgem com a participação na Eurovisão. Tudo porque os artistasdecidiram usar como adereços bandeiras de Israel e Síria, enquanto “apelo para a paz entre os povos árabes”.

É impossível desconsiderar também os 75 anos de hostilização e ocupação ilegal genocida da Palestina, mesmo que a União Europeia foque imensos recursos em reescrever essa história. E se este já não fosse um grande impedimento para qualquer alinhamento de valores, Israel leva a cabo - desde o ataque elaborado pelo Hamas dia 7 de Outubro de 2023 – uma política de bombardeamentos indiscriminados, destruição maciça de infraestruturas e delapidação dos serviços básicos do povo da Faixa de Gaza, acumulando dezenas de milhares de vítimas e mortos, sem qualquer tipo de remorso ou justificação. Hospitais, universidades, habitações e espaços públicos, há meses que Israel reúne todos os esforços para que o povo Palestino nunca mais possa assistir a uma terra habitável e digna, e só saberá a História o futuro da Faixa de Gaza e da população resistente.

Por tudo isto, colocando de lado a dualidade de critérios tão característica da Europa e do seu festival da canção, não existem atualmente justificações para continuar a promover os valores democráticos de Israel, e defender a sua permanência no evento. Mesmo que diplomaticamente faça um brilharete como planeará fazer este ano na Eurovisão e como tem feito todos estes anos em que garantiu a sua participação. É aberto aqui um espaço para discussão e para uma eventual tomada de posição, tanto pelos países participantes, como também pela própria EBU.

Conclusões

É inconcebível o cenário onde se permite a Israel permanecer em competição mais um ano, depois de provas dadas do seu inconsequencialismo relativamente ao conflito internacional que leva unilateral e fervorosamente a cabo durante quase o último século. Fica assim nas mãos dos diferentes países em competição e da emissora europeia a decisão, à semelhança daquela tomada em fevereiro de 2022, de boicotar ou banir Israel de participar no evento.

Não existem condições para considerar um Estado genocida apto a promover a sua imagem para cerca 162 milhões de espectadores, da mesma forma que não foi considerada apta a Rússia aquando do despoletar do conflito com a Ucrânia. A decisão, na verdade, peca por tardar e é legítimo refletir sobre o que leva a Europa e a EBU a adotar uma dualidade de critérios de exclusão, assim como uma dualidade de critérios de posicionamento político e cultural. Não é, assim, demasiado longínquo o cenário que prevê a contínua legitimação do estado de Israel como um mecanismo de dupla face. Admitir que a história nunca favoreceu Israel e que este foi, desde sempre, um território com uma estratégia colonialista e que hoje incentiva um conflito desigual e criminoso, é pôr em causa a própria Europa, a Eurovisão e o seu sistema de valores que serve de génese em toda a extensão do seu projeto inicial.

De um lado, a discussão sobre se se deve ou não banir países pelas suas posições políticas e configuração internacional é uma discussão importante. Perceber se artistas como Manizha e outros - que pedem por pontes pacíficas e expressões culturais pelo protesto e pela paz – podem ter ou não razão, pugnando assim pela não tomada de decisões diplomáticas dentro do festival, deixando isso à responsabilidade dos artistas e das suas músicas. Na verdade, uma guerra patrocinada por um Estado pode não estar a ser patrocinada pelo seu povo, e isso não só é verdade na Rússia, onde os protestos anti-guerra apesar de fortemente reprimidos encontram o seu lugar, como também o é em Israel, havendo grandes massas de pessoas mobilizadas a pedir pela paz e uma impopularidade incomparável do Governo de Benjamin Netanyahu.

De um outro lado, espera-se dos países participantes um respeito solene pelo que torna a Eurovisão um festival fascinante ano após ano. Uma vontade de mostrar o melhor do país sem nunca hostilizar ou oprimir nenhum outro, em completo respeito pelo progresso, democracia e pelos direitos humanos. Forma-se na Eurovisão um meio de “batalha” para conseguir expressar um “nacionalismo que se não existisse neste evento cultural, certamente culminaria em mais guerras” como diria Jørgen Franck diretor da Eurovisão em 2011. É (ou seria) expectável de todos estes uma atitude de não complacência com a permanência de países como a Rússia e Israel, mantendo uma coerência única e exemplar.

E, na verdade, alguns países já deixaram clara a sua posição relativamente à questão da permanência de Israel na competição, bem como vários artistas ex-participantes e canais emissores. Finlândia, Islândia, Suécia e Noruega são alguns destes países que viram grandes massas de apoio a um boicote. Faltam 33 países para tomar a sua decisão, e falta a decisão final da União Europeia de Radiodifusão.

Rafael Pereira
Sobre o/a autor(a)

Rafael Pereira

Estudante de sociologia deslocado para Coimbra e ativista interseccional
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