Está aqui

Carta aberta ao Primeiro-Ministro

O objeto desta missiva é para lhe falar de portagens, mais concretamente das portagens na Via do Infante/A22 e o que as mesmas representam para o Algarve.

Palácio de S. Bento, 10 de março de 2016

Exmº Senhor Primeiro Ministro,

Escrevo-lhe esta carta aberta a título pessoal, como deputado e como cidadão, num momento importante para o país quando, na Assembleia da República, se discute o Orçamento de Estado para 2016. Sei que o Senhor Primeiro Ministro é uma pessoa frontal e determinada, que pauta a sua ação pela defesa e bem da coisa pública e por um elevado sentido de justiça. Características atestadas, por exemplo, nos últimos 100 dias enquanto timoneiro do leme governamental do nosso país.

Enquanto deputado do Bloco de Esquerda, eleito pelo Algarve, estou disponível para continuar a colaborar com o Senhor Primeiro Ministro e o XXI Governo Constitucional, que tutela, para superar os obstáculos que vão surgindo, num mar por vezes com águas revoltas. Mas o importante é que o navio chegue são e salvo a porto seguro. Sempre no pressuposto da defesa e bem da coisa pública e dos cidadãos do país.

O objeto desta missiva é para lhe falar de portagens, mais concretamente das portagens na Via do Infante/A22 e o que as mesmas representam para o Algarve. Como se sabe, foram as referidas portagens implementadas no Algarve no dia 8 de dezembro de 2011 pelo então governo do PSD/CDS. As portagens aplicadas, também ao Algarve, tinha sido uma exigência nas negociações com o governo PS, pelo então dirigente do PSD, Dr. Passos Coelho, que não admitiu que a Via do Infante ficasse de fora do sistema de cobrança de portagens, à semelhança das outras ex-SCUT.

 

Senhor Primeiro Ministro,

Este constituiu logo um primeiro erro, pois grande parte da Via do Infante (71%) foi construída sem perfil de autoestrada e fora do modelo de financiamento SCUT, sendo financiada maioritariamente por fundos comunitários.

Por outro lado, a Via Infante foi construída como alternativa à Estrada Nacional 125, pelo facto desta constituir uma via litoral altamente urbanizada, de evidente sinistralidade e mortalidade, conhecida no passado como “estrada da morte”. A requalificação desta via – longe de se encontrar concluída - não tem trazido melhorias ao nível da sinistralidade, bem pelo contrário. O efeito perverso, já expectável antes da introdução desta medida cega de política pública, de deslocação em massa do tráfego rodoviário para a Estrada Nacional 125, provocou um grave retrocesso na mobilidade das populações, e potenciou os acidentes rodoviários, feridos graves e mortes nas estradas algarvias, em particular nessa “rua urbana”.

A Via do Infante foi construída como uma via estruturante para combater as assimetrias e facilitar a mobilidade de pessoas e empresas, com vista ao desenvolvimento económico e social do Algarve.Com a introdução de portagens as assimetrias aumentaram e a crise agravou-se na região

Mais do que um espetro, o regresso da “rua da morte” tornou-se numa realidade trágica no Algarve com a imposição de portagens. De acordo com dados da Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária a média de acidentes situa-se em 27 por dia na região. Só no ano de 2015 o Algarve sofreu quase 10 mil acidentes de viação, 35 vítimas mortais e mais de 150 feridos graves – a maior parte na EN 125. Uma tragédia imensa, verdadeiramente insustentável e terrível. Uma espécie de estado de guerra não declarado no Algarve.

Quantas mais vidas se irão perder, quantas famílias mais serão destroçadas por força de leis iníquas aplicadas, sem dó nem piedade, pela ação de um governo? Há que reparar, corrigir urgentemente esta injustiça, impiedosamente tão mortífera Senhor Primeiro Ministro. Decididamente, a EN 125 não constitui qualquer alternativa séria à Via do Infante. Um estudo produzido pelo Ministério das Obras Públicas, Transportes e Comunicações, em 2006, já tinha chegado a esta conclusão, apontando assim pela não introdução de portagens na Via do Infante.

A Via do Infante foi construída como uma via estruturante para combater as assimetrias e facilitar a mobilidade de pessoas e empresas, com vista ao desenvolvimento económico e social do Algarve.Com a introdução de portagens as assimetrias aumentaram e a crise agravou-se na região, a qual vive fundamentalmente do turismo. Sucederam-se as falências e dificuldades das empresas, o desemprego aumentou. Houve uma perda acentuada da competitividade da região em relação à vizinha Andaluzia, onde os espanhóis, por recusarem as portagens, diminuíram as suas visitas ao Algarve, elevando-se as perdas deste mercado em mais de 25%, situando-se a diminuição das receitas deste setor em cerca de 30 milhões de euros anuais.

 

Senhor Primeiro Ministro,

Também não é nada dignificante para a imagem da região e do país, tal como para aqueles que nos visitam, o sistema de cobrança de portagens vigente, afastando muitos estrangeiros, particularmente espanhóis. Mais uma vez, na altura do período da Páscoa, iremos assistir a filas intermináveis de viaturas paradas ou em marcha lenta, a grande maioria de matrícula espanhola, para pagamento junto à fronteira do Guadiana. E muitos condutores, mais uma vez, irão fazer inversão de marcha e regressar às suas terras de origem.

As portagens também violam tratados internacionais sobre cooperação transfronteiriça, como o Tratado de Valência, assinado entre Portugal e Espanha e de onde deriva a Euroregião Algarve-Alentejo-Andaluzia

As portagens também violam tratados internacionais sobre cooperação transfronteiriça, como o Tratado de Valência, assinado entre Portugal e Espanha e de onde deriva a Euroregião Algarve-Alentejo-Andaluzia.

A agravar toda esta situação, já de si muito complexa, temos as obras de requalificação da EN 125, como referi. Obras muito lentas em extensos lanços da via, o que provoca filas imensas de veículos e um acréscimo de acidentes de viação. Os condutores desesperam e as suas vidas mergulham num ciclo infernal de nervosismo, stress e desespero. Alguns dão meia volta – o que agrava o risco de acidentes – e são constrangidos a circular pela Via do Infante, obrigando-os a um pagamento de taxas de portagem que não estavam dispostos a fazê-lo. Trata-se de uma coação injusta e penalizadora – a favor da concessionária, o que não devia acontecer num Estado de direito democrático.

Noutros lanços da EN 125, particularmente entre as localidades de Vila Real de Santo António e de Olhão, as obras de requalificação ainda nem começaram (passaram para a Infraestruturas de Portugal), sendo bem patente a degradação em que se encontram estes troços. A renegociação do contrato com a concessionária pelo governo PSD/CDS também contemplou a anulação da construção de importantíssimas variantes à EN 125 nos concelhos de Lagos, Olhão, Tavira, Loulé, e à EN 2, entre Faro e S. Brás de Alportel, o que representa um prejuízo muito elevado face ao projeto inicial para os utentes, populações e autarquias da região. Mais uma vez o Algarve foi enganado.

 

Senhor Primeiro Ministro,

Ambos sabemos que a PPP da Via do Infante contribui e muito para onerar o Estado e os contribuintes em muitos milhões de euros, mesmo considerando a receita da cobrança de portagens. As elevadas taxas de rentabilidade, os custos, os prejuízos provocados à economia e à sociedade da região, os mortos, os feridos, as despesas com o SNS são largamente superiores às receitas geradas. As portagens no Algarve revelam-se assim insustentáveis por muito mais tempo.

Nunca é demais invocar o consenso alargado na região contra as portagens

Também nunca é demais invocar o consenso alargado na região contra as portagens. Pronunciaram-.se contra estas investigadores e responsáveis políticos regionais, diversas Assembleias Municipais, órgãos executivos de Câmaras e a própria Assembleia Intermunicipal do Algarve. O protesto popular anti-portagens na região que já dura há 5 anos consecutivos mobilizou milhares de pessoas, através de dezenas de marchas lentas, vários fóruns e debates, duas petições à Assembleia da República, inúmeras reuniões com Câmaras Municipais e outros organismos regionais, três manifestos, três plataformas de luta e inúmeras iniciativas envolvendo muitas entidades e associações sindicais, empresariais, políticas e outras do Algarve e da Andaluzia.

 

Senhor Primeiro Ministro,

Para terminar, relembro-lhe o que me disse pessoalmente e a outros membros da Comissão de Utentes da Via do Infante, numa reunião realizada no Hotel Aquashow, em Quarteira, em junho de 2015. Referiu que iria estudar o contrato da PPP Via do Infante se fosse eleito Primeiro Ministro com as eleições que se aproximavam. Admito que estando apenas há pouco mais de 100 dias à frente do governo, dias nada fáceis, não tenham sido suficientes para estudar matérias contratuais deveras complexas.

Também recordo que durante a campanha eleitoral para as eleições legislativas de 4 de outubro o Senhor Primeiro Ministro, referindo-se a portagens e à EN 125 frisou que era «necessário eliminar e criar melhores condições de acessibilidades em regiões (…) de particular afluxo turístico, como a Via do Infante» e que, «algumas situações em concreto devem ser vistas, por exemplo a situação da Via do Infante é objetivamente absurda porque sabemos bem que a chamada EN 125 é um cemitério, impraticável, não é alternativa e portanto não é razoável». Assim, o prometido é divido.

 

Senhor Primeiro Ministro,

Os utentes, as populações, os diversos agentes, todas aquelas e aqueles que vivem, trabalham, se deslocam e visitam o Algarve acreditam e anseiam que este novo governo volte a isentar a Via do Infante da cobrança de taxas de portagem, com urgência

Acredito que irá manter a palavra dada, pois não tenho quaisquer razões para duvidar face a tão evidentes constatações. Os utentes, as populações, os diversos agentes, todas aquelas e aqueles que vivem, trabalham, se deslocam e visitam o Algarve também acreditam e anseiam que este novo governo, que inaugurou uma nova era de esperança tome a medida que se afigura mais sensata e justa em relação ao Algarve – voltar a isentar a Via do Infante da cobrança de taxas de portagem, com urgência. E o apelo que lhe faço é que tome as providências necessárias, com urgência, através do governo que preside, para suspender, ou terminar com as portagens na Via do Infante.

Estou confiante que as minhas expetativas, que as expetativas do Algarve não serão defraudadas. Caso contrário, a desilusão será enorme e de consequências, mais uma vez dramáticas, para não dizer trágicas. Não será uma tragédia grega, mas a continuação de uma tragédia, agravada, no sul do país.

Desde já, apresento os meus cordiais cumprimentos ao Senhor Primeiro Ministro e subscrevo-me com estima e consideração,

O cidadão e deputado

João Vasconcelos

Sobre o/a autor(a)

Professor. Mestre em História Contemporânea.
Comentários (1)